É uma festa, é a Cafetra a gostar de todos nós

A Noite Fetra começou em 2011 para angariar fundos. Quatro anos depois, é uma celebração do crescimento dos que a integram e da forma como congregam muitos outros à sua volta. Pega Monstro, Éme ou B Fachada. Três nomes para um dia inteiro de música. 26 de Dezembro na Caixa Económica Operária

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Pega Monstro, rock sónico, voz de todos os dias transformada em poética de canção DR
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B Fachada DR

Quem esteve naquela noite na Barraca, em Lisboa, ano 2011, chegou com um objectivo específico. Era noite de música, claro, mas também de beneficência. Não por um mundo melhor, nem para acabar com a fome no mundo. Algo mais humilde. Na Barraca, em 2011, a Cafetra, ou seja Pega Monstro, Kimo Ameba ou B Fachada, este enquanto figura tutelar, juntaram-se com um objectivo preciso. Reunir fundos para a edição do primeiro CD da editora/colectivo, que sairia meses depois: era Até Morrer, dos Passos Em Volta. Esse foi o primeiro momento.

Avançamos para 2014, saltando a repetição na Barraca em 2012 e o 2013 em que foi a Casa Independente a acolhê-los. 2014, então. A Caixa Económica Operária, na Graça, ocupada para a matinée e repleta de gente durante a noite. Concertos de Pega Monstro, Éme, Putas Bêbadas, Smiley Face, tudo pessoal da Cafetra, todos com álbuns editados (em edição física ou digital) desde a tal noite de 2011, aos quais se juntaram, por exemplo, uma banda formada por Afonso Simões (Gala Drop), pelo saxofonista Pedro Sousa e por Miguel Mira, no violoncelo, homens do jazz e da música experimental, mas com gosto em navegar outras águas.

“Lembro-me de entrar [na Caixa Económica Operária] e parecia que estavam músicos por todo o lado, de todos os quadrantes”, recorda B Fachada. “Atraíram-me as pessoas envolvidas, a música que fazem e a forma como trabalham, a sua energia e criatividade”, explica o guitarrista Manuel Mota, nome de destaque da música experimental portuguesa. Os dois estarão em palco este sábado, 26 de Dezembro, na festa/celebração/acontecimento que será a quinta Noite Fetra, na Caixa Económica Operária. Começa às 16h com concertos de Rabu Mazda & Van Ayres, Smiley Face, Yan Gant Y Tan & 666MFras, Calhau! e Manuel Mota & Afonso Simões. À noite, a partir das 21h30, ouvir-se-ão Éme, Lourenço Crespo, Putas Bêbadas, Pega Monstro, B Fachada, CAVEIRA e Bleiddwn (bilhetes a 8€).

Nestes últimos quatro anos, muito aconteceu. Em 2011, a Cafetra era um colectivo que gerava curiosidade pela música que começava a mostrar, pela diversidade dos elementos que a compunham e pela forma como se relacionavam e como operavam. Eram, basicamente, um grupo de amigos, fechado sobre si mesmo, que inventava bandas em barda, que arranjava concertos colectivos em modo do-it-yourself e que parecia comunicar entre si com expressões, habitualmente transpostas para as canções, cujo significado só eles conheciam.

Quando começaram a chegar os álbuns (o dos Passos em Volta, o homónimo de estreia das Pega Monstro, os de Éme, o dos Kimo Ameba ou das Putas Bêbadas), e com eles mais concertos e a atenção da imprensa, a Cafetra foi atirada ao mundo e o mundo dividiu-se. Sem meios-termos: “refrescante e inspirador”, exclamava-se de um lado da barricada; “o horror, uma fraude”, gritava-se do outro. Quanto a eles, não quiseram saber nem de uns, nem de outros, e continuaram como sempre.

“Há um vídeo da primeira Noite Fetra que tem uma entrevista com todos [os membros da Cafetra] ao mesmo tempo”, conta Maria Reis, guitarrista e vocalista das Pega Monstro. “É exactamente igual [a agora]. É quase assustador. As pessoas vão tendo os seus trabalhos, as suas faculdades, mas depois acabamos sempre por nos juntar para ir beber umas cervejas e irmos ao estúdio tocar. Estamos muito ligados a partir da música e isso acaba por ser tão ou mais forte que tudo o resto”.

Olhamos para o vasto catálogo Cafetra e encontramos muito, muito diferente. O rock sónico das Pega Monstro, voz de todos os dias transformada em poética de canção, como cristalizado no magnífico segundo álbum do duo, Alfarroba, um dos destaques do ano discográfico. O noise-rock sem rede dos Putas Bêbadas, registado em Jovem Excelso Happy. As canções de travo clássico e linguajar moderno, só dele, Éme, que ouvimos no belíssimo Último Siso. E o humor armado de ukelele de Smiley Face, o cantautor de lírica surpreendente chamado Lourenço Crespo, o R&B deliciosamente adulterado, mas mui dançável, dos Iguanas, ou a electrónica ambiental (ora onírica, ora dilacerada) de Rabu Mazda & Van Eyres (ouça-se Acacia).

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Canções de travo clássico e linguajar moderno, Éme DR

“Eles oferecem parte daquilo que é uma obsessão minha, a língua e a pronúncia. Têm um língua e uma pronúncia e têm esse assunto bem resolvido, o que os destaca”, destaca B Fachada. “Também nos dão uma visão muito independente do que é fazer música e de como a música pode ser feita. Ao mesmo tempo, não estão americanizados, não são os youtubers normais, não são uma representação caricatural deles próprios. São um grupo de indivíduos e essa individualidade está sempre presente”. Este último ponto é importante. Como destaca Manuel Mota, os “métodos não são novos, mas são sempre motivadores e inspiradores”. Métodos? O agir em rede, de forma independente, criando a sua própria estrutura criativa, agregando. Isso existe, pelo menos, desde que, dos anos do punk, saiu o do-it-yourself (e as fanzines, editoras e promotores independentes), como fórmula alternativa ao funcionamento habitual da indústria musical. O lado inspirador, e aí chegará Manuel Mota, como já acentuou B Fachada, vem dessa individualidade marcada. “Independentemente de questões estéticas, são uma luz positiva no meio artístico e musical. Não são snobes de um tipo estético ou de uma forma musical”.

Faz, edita e vende tu mesmo
Pouco a pouco, o círculo foi-se alargando. O “grupo muito fechado a fazer private jokes, sem reparar no que estava à volta”, a descrição é de Maria Reis, começou a olhar mais atentamente. Vimos Cão da Morte, hoje Luís Severo, nome sob o qual editou este ano essa pérola pop intitulada Cara d’Anjo, aproximar-se da trupe em concertos e em estúdio. Vimos Maria Reis juntar-se durante algum tempo à formação de palco dos Gala Drop, ou temos Miguel Abras, dos Putas Bêbadas, integrado na formação dos CAVEIRA. CAVEIRA que albergam hoje, além do fundador Pedro Gomes, o baterista jazz (e rock e tudo o que ele quiser) Gabriel Ferrandini e o saxofonista Pedro Sousa. E a música, sendo o centro de tudo, não surge isolada nesta história (certamente não por acaso, os Calhau!, dupla que se move na intersecção entre a música, a performance e as artes visuais, são um dos convidados exteriores à Cafetra na Noite Fetra de 2015).

“Uma das nossas grandes referências foi ir à Feira Laica [evento dedicado à edição independente, centrada na banda-desenhada e artes gráficas, mas alargada a outras expressões, realizada pela primeira vez em 2004]. Tem esta coisa de vender o produto directamente. Produto que é artístico, mas que os artistas estão a ali a vender como se vendem laranjas. Muito directo e muito prático”, diz Maria Reis. “Isso é muito fixe para as pessoas que se queixam que não conseguem editar as suas coisas. Faz, edita e vende tu mesmo. Tão simples quanto isso”.

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Manuel Mota & Afonso Simões DR

A Feira Morta, naturalmente, estará representada na Noite Fetra, com bancas e lançamentos, e Joana da Conceição, artista visual e membro do duo Tropa Macaca, será a responsável por toda a componente visual do acontecimento. “Com a internet, é tudo muito rápido, mas estamos sempre a ser conduzidos aos mesmos sítios. Com a edição física vais pela tua imaginação até outros sítios. O importante é não perder a imaginação. É brincar e não estar sempre tão sério”.

É indissociável da Cafetra o tempo e o local em que existem. Nasceram num mundo que existe e se relaciona em rede (olá Internet), surgiram num contexto em que se procuravam globalmente alternativas à forma estereotipada de criar, produzir e divulgar. Cresceram num universo em que as fronteiras estéticas e de gosto se aboliam e em que se começava a impor a ideia do local, o olhar para nós próprios e para os próximos que nos rodeiam como fermento criativo. Nesse sentido, não são um caso isolado. São-no pela singularidade e diversidade do que criam e pela forma como cresceram (em abrangência, em produção musical), mantendo-se, no essencial, aquilo que eram a início. “Conseguem manter uma certa pureza no trabalho que não tem a ver com a idade, mas com uma atitude em que parece que a vida do dia-a-dia acaba por não conspurcar o trabalho em si, o que poderia acontecer muito facilmente”, aponta B Fachada. “Neles, a profissionalização ou a ausência dela acabou por não fazer diferença nenhuma”.

Manuel Mota vê esta noite como “uma celebração do crescimento” da Cafetra: “Têm trabalhado imenso, têm desenvolvido muito a música que fazem e vão celebrar isso”. Maria Reis começa por apontar, entre risos, uma diferença substancial entre a edição pioneira, em 2011, e esta que agora chega: “Agora é o contrário de um ‘fund-raising’, porque não fazemos guita nenhuma”. Depois, como Manuel Mota, centra-se no principal. “É a celebração de um ano, como uma festa de fim de escola. Uma cena para outros. A celebração do que temos feito e o reconhecimento do que foi feito a partir das pessoas que vamos conhecendo”.

Um momento para assinalar o caminho que se constrói. Em frente. Próxima paragem: Caixa Económica Operária, dia 26 de Janeiro.

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