Notícias do Portugal seiscentista

Um manuscrito em edição exemplar e cheia de dados preciosos para a investigação futura

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A Biblioteca da Ajuda conserva este e outros manuscritos de peso — mas as condições de leitura são deficientes

Contra ventos e marés, quase sempre à margem das modas e das agendas comemorativas, José Adriano de Freitas Carvalho e um grupo de discípulos construíram — na Universidade do Porto, em torno da revista Via Spiritus — um dos centros de pesquisa mais inovadores em Portugal. No que diz respeito às humanidades, um centro de excelência. A vasta rede de contactos internacionais, estabelecida de forma pioneira, não afectou o centramento no trabalho filológico e erudito de edição de textos em português, relativos à história da cultura e da literatura nos séculos XV a XVIII. A insistência em temas principais, como o da cultura cortesã e o das correntes da espiritualidade, foi entendida num sentido amplo que permitiu retomar, a uma nova luz, agendas de investigação caras a Marcel Bataillon e Eugenio Asensio, para a Península Ibérica, e a Eugenio Garin e Delio Cantimori, para a Itália do Renascimento em diante.

Assim, são muitos os trabalhos aprofundados de investigação suscitados pela Via Spiritus: do estudo das formas de religiosidade mística e profética às heterodoxias, às práticas religiosas das devotas, aos cruzamentos da religiosidade com as questões sociais, suscitadas pelas reacções ao pauperismo, às construções mais ortodoxas e subsequentes perseguições inquisitoriais, sem esquecer a necessidade de reconstruir a diversidade de atitudes religiosas, em correspondência com as ordens e congregações em causa, ou as correntes do iluminismo católico setecentista, donde não está ausente o interesse pelos novos saberes científicos, nomeadamente a economia política.   

Um novo livro integrado na série Espiritualidade e corte da Via Spiritus foi recentemente publicado. Trata-se do copiador das cartas de D. Francisco de Portugal a D. Rodrigo da Cunha, que se encontra na Biblioteca da Ajuda, tendo sido objecto de uma primeira edição, em 1947, da responsabilidade do bibliotecário Carlos Alberto Ferreira. É composto por 114 cartas, escritas de Lisboa, Almada e Madrid, entre 1616 e 1631. A nova e cuidada edição de Freitas Carvalho é exemplar. Abre com uma introdução que é um estudo aprofundado do período em causa, é acompanhada por notas que são uma mina de informação e fecha com um índice onomástico, como mandam as boas regras da filologia. Sublinho, apenas, três aspectos que se afiguram sugestivos em relação a futuras investigações.

Em primeiro lugar, atente-se na forma. A brevidade erudita e cortesã, conforme nota Freitas Carvalho, constitui-se numa das características principais das cartas de D. Francisco de Portugal. De um lado, encontram-se nelas constantes citações de Camões, tanto da épica como das rimas, mas, acima de tudo, de Sá de Miranda, das éclogas e das cartas, criando uma espécie de mundo de referências partilhado entre o autor e o seu destinatário. O universo dos autores portugueses citados integra, ainda, O Lima de Diogo Bernardes, osContos de Gonçalo Fernandes Trancoso, Miguel da Silveira, autor de O Macabeo, Rodrigues Lobo, que “entre nós era só o que imprimia”, e a poesia de Bernardo Roiz, que “fará bem de não imprimir”. Quanto aos castelhanos, é evidente a admiração sentida por Lope de Vega, Góngora e Francisco de Quevedo, entre muitos outros. A questão principal estava em saber se na corte, em Madrid, a poesia florescia ou se esse mesmo florescimento se traduzia apenas num uso e abuso dos recursos formais, a suscitar duras críticas da parte de quem defendia o cânone português, aparentemente mais sóbrio. Do outro lado, as cartas estão cheias de notícias acerca do que se passava na corte e nos seus conselhos, dos casamentos contratados da nobreza aos fluxos de requerentes e à prática generalizada de arbítrios ou conselhos, sem esquecer as referências a ritos e cerimónias, incluindo os epitáfios em que D. Francisco se considerava exímio.

Em segundo lugar, há que considerar diferentes espaços que definem, ao mesmo tempo, configurações sociais e sistemas de valores, muitas vezes em oposição ou em conflito. A este respeito, uma análise das cartas é bem instrumental porque nos ajuda a romper com ideias feitas acerca de uma suposta sociedade corporativa de antigo regime. Antes de mais, está a referida corte, onde acorriam os pretendentes, em busca de mercês pelos seus serviços. Em contraste, estava a própria família que, no caso da de D. Francisco, contava com um número crescente de filhos, ávidos de sustento e oportunidades, a obter na corte. Mas estava, também, esse mundo rural de Portalegre a Braga, visitado com zelo episcopal pelo seu destinatário, D. Rodrigo da Cunha. Mas a corte, a família, e as virtudes eclesiásticas não foram os únicos espaços, onde se inscreveu o trajecto de D. Francisco de Portugal. O serviço na armada do Reino e a participação do autor das cartas na expedição luso-castelhana que recuperou S. Salvador da Baía aos holandeses em 1625 definíam uma outra dimensão, em que distinções nobiliárquicas se confundiam com a carreira das armas. Penúltimo espaço: o da prisão, em parte equiparada a degredo, fora dos círculos de influência cortesãos e da vida familiar, determinada por um castigo que é imposto ao autor e por ele considerado injusto. Último espaço de confronto: tal como nota Freitas de Carvalho, a correspondência de D. Francisco é atravessada por  um “discreto anticastelhanismo”. É o caso da passagem escrita em Madrid, em 1622, quando o autor exclama: “que os castelhanos estão mais boçais que se foram de Arraiolos”!

Em terceiro e último lugar, há que reparar na sucessão dos principais acontecimentos e no modo como eles constroem, mais do que uma cronologia, uma espécie de textura onde coexistem vários tempos. A família detém, com certeza, uma continuidade maior de um ponto de vista temporal, dadas as preocupações constantes do autor em relação aos seus parentes mais chegados, bem como a relação que tinha com o seu destinatário e tio. Não se esqueça, a este respeito, que a Restauração de 1640 chegou a ser atribuída ao trabalho desenvolvido pelos sobrinhos de D. Rodrigo, à época arcebispo de Lisboa. Mas são as deslocações, entre Lisboa e Madrid, o serviço militar e, sobretudo, a prisão de D. Francico em Almada, entre 1627 e 1629, por se ter recusado a ir servir na carreira da Índia em circunstâncias por ele consideradas contrárias à sua própria honra, que assinalam o circunstancialismo de uma trajectória individual. A fortuna e os riscos associam-se, pois, a uma figura que aspirava à sua própria distinção. E não terá sido por acaso que foi na prisão que D. Francisco compôs a Arte de galantaria e Divinos y humanos versos (edição de 2012, também exemplar, de Maria Lucília Gonçalves Pires).

Enfim, numa altura em que dois manuscritos de peso da Biblioteca da Ajuda são publicados — o copiador das cartas aqui em apreço e os comentários a Os Lusíadas de D. Marcos da Silva ou de S. Lourenço, na bela edição de Isabel Almeida —, será que esta mesma instituição, em tempos dirigida por Ramalho Ortigão, tem a possibilidade e os meios de programar as suas actividades, fazendo jus ao valiosíssimo património de livros e manuscritos que se encontram à sua guarda? É que a preservação, o estudo e divulgação são tarefas que se impõem e que deverão ser levadas a cabo, contra ventos e marés. Nos meses de Inverno, a imagem ridícula de um ou dois leitores encostados ao único aquecimento a óleo — uma situação em que já por várias vezes me encontrei naquela que é uma mais deslumbrantes salas de leitura, que tem de ser preservada enquanto tal e não transformada num qualquer espaço para eventos e espectáculos — tem de dar lugar a uma Biblioteca da Ajuda capaz de contribuir para o conhecimento das nossas gentes e da nossa cultura.

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