Kurt Cobain, prazer culpado

Colecção de esquissos de Kurt Cobain, ideias para canções por desenvolver, versões embrionárias que nada acrescentam à história...

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Colecção de esquissos, ideias para canções por desenvolver, versões embrionárias que nada acrescentam à história... DR

Tendo em conta o que era Montage of Heck, o documentário de Brett Morgen que nos mostra Kurt Cobain com uma intimidade que, à medida que os anos avançam, se aproxima perigosamente do voyeurismo, seria de esperar que Montage of Heck: The Home Recordings, álbum que o realizador compilou a partir de 200 horas de áudio preservadas em 1008 cassetes gravadas pelo líder dos Nirvana, fosse isto que é: uma versão áudio da ideia, manifestado no filme, de que, acedendo à intimidade do cantor, nos aproximássemos de uma qualquer verdade que desvendasse o artista. Claro que há aqui uma ilusão: não é por vermos filmagens caseiras de um Cobain dolorosamente decadente, minado pela toxicodependência, que seremos banhados pela luz da revelação.

Apesar da referida e desconfortável cedência ao voyeurismo no seu último terço, o documentário tem mérito na forma como mostra a construção de um músico saído de um tempo, o dos filhos dos baby boomers, o da influência punk rock no underground, e de um lugar, a América das terriolas fechadas sobre si mesmas, perdidas em lugar nenhum. A banda-sonora montada por Morgen surge, nesse contexto, como a versão áudio do documentário: “montei este álbum para criar a sensação de que o ouvinte estava sentado no apartamento de Kurt em Olympia, no final dos anos 1980, testemunhando a sua criação”, explicou o realizador à Rolling Stone. O que temos, porém, é uma colecção de esquissos, ideias para canções por desenvolver, versões embrionárias de Sappy ou Frances farmer will have her revenge in Seattle que nada acrescentam à história, colagens sonoras de ruído, vozes manipuladas, excertos televisivos, ou, em Aberdeen, Kurt Cobain enquanto cronista, de um humor grotesco, do desencanto e decadência de uma adolescência pouco feliz.

Editado em duas versões (uma deluxe com 31 faixas, outra em CD único, com 13) na mesma altura em que Montage Of Heck, o documentário, conhece edição em DVD, Montage Of Heck não é, como vem sendo descrito, um álbum a solo de Kurt Cobain. Duvidamos, de resto, que o próprio aprovasse a edição deste material. Tal não é, em si, um problema – se seguíssemos à risca os desejos dos artistas nunca conheceríamos a maior parte da obra de Franz Kafka. O problema é a relevância e pertinência do que nos é oferecido. Há, claro, vislumbres de coisas interessantes (como Clean up before she comes, guitarra eléctrica e voz grave e clara ou o delicado instrumental Letter to Frances), mas por norma desaparecem de vista, abruptamente, antes de as agarrarmos verdadeiramente. No limite, Montage of Heck: The Home Recordings, diz menos sobre Kurt Cobain que sobre o realizador, homem que mergulhou durante tanto tempo nos arquivos do vocalista que julgará conhecê-lo como ninguém.

Uma das gravações aqui incluídas chama-se Beans e é uma bizarrice de audição difícil, mas razoavelmente divertida (a faixa de voz e guitarra acelerada dão a Cobain um tom infantil de criança irritante e malvada). Em meados dos anos 1990, ouvíamo-la numa das muitas edição pirata que passavam de mão em mão entre os fãs da banda. Toda a experiência tinha algo de interdito, como se estivéssemos a espreitar, à hora errada, para onde não deveríamos. Claro que essa sensação ajudava ao charme da operação. Mas não deixava de ser óbvio que nos entregávamos a um prazer culpado. Montage of Heck: The Home Recordings deixa-nos com uma sensação semelhante. Não nos conseguimos impedir de o ouvir, mas pouco há a retirar da experiência quando os dez minutos de Do Re Mi, a última música, chegam ao fim. Não regressamos. Temos Bleach, Nevermind, In Utero e Incesticide para ouvir. 

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