Chegou o senhor Godot

Havemos de ter o engenho para, juntos, começarmos a reparar o que está desconcertado.

Embora não se tenha feito anunciar e tenha levado quarenta anos a percorrer o caminho, o senhor Godot deixou de ser um absurdo, como o chegaram a classificar, ele aí está. O que interessa que tenha sido no Outono, qualquer estação era boa para receber o senhor Godot. Houve quem, durante todos estes anos, lhe tenha escrito cartas, enviado emissários, dizendo que nada receasse, que havia quem desejava a sua presença, dar-lhe as boas-vindas. Chegou quando outros estão prestes a partir, os mesmos que folgavam por o manter longe do sítio que sempre lhe pertenceu. Entre os seus. Não se nega que não tenha constituído uma surpresa, alguns já tinham mesmo desistido de o conhecer, outros já o tinham como uma utopia. Chegou mesmo a haver quem desdenhasse da sua existência, que era tempo perdido contar ele. Porém, a grande maioria sabia que era um deles e que por isso não abandonaria os seus no momento em que as circunstâncias tornassem inevitável a sua presença. Coube-nos em sorte resgatar Godot e fazer dele um anti-D. Sebastião.

Já não se trata de talvez chegar amanhã, veio na altura em que se precisa de si, senhor Godot. À conta da usura, os que estão prestes a partir deixam casas vazias, cada um para seu lado, ofícios sem préstimo, um nó nas gargantas, rostos fechados, o salário que não chega, a doença que fica para depois. Foram duros os últimos tempos. Tão duros como um pesadelo. Muitos de nós temia pelo dia seguinte, desconfiava que ainda houvesse dia seguinte, e se no dia seguinte ainda havia vida para viver. Este talvez tenha sido o pior dos haveres que nos foi retirado. E se resistimos às humilhações, se suportámos todas as privações, mas se na adversidade nos mantivemos unidos, foi porque nunca desistimos de si. Andámos por aqui e por ali enquanto os anos passavam, trocámos ásperas palavras, tivemos desavenças, olhámo-nos de viés. Mas enquanto isso, também aprendemos a evitar as armadilhas, a nunca perder de vista os nossos, a forçar, sempre a forçar a entrada na terra que deve ser de todos.

Serviu-nos de inspiração nestes últimos tempos o conselho de um antigo ensaísta, “o melhor alfaiate não faz o seu casaco de acordo com o tecido que tem; pede sempre mais”. Desistir de exigir nunca esteve nos nossos planos; a rendição nunca foi sequer discutida entre nós. Os que agora estão prestes a partir sabem que o vão fazer porque nunca fomos seus cúmplices. Tornámos-lhes o ar irrespirável, sufocam, embora ainda se dêem ares e ensaiem umas bravatas dignas de quem sabe que está de saída e colou os pés ao chão.

Agora que, finalmente, está entre nós, senhor Godot, com os votos de que tenha vindo para ficar, havemos de ter o engenho para, juntos, começarmos a reparar o que está desconcertado. A jornada, sabemos, vai ser longa, os resultados começarão por ser escassos e por vezes a impaciência vai ser muita. Mas também sabemos, como diz aquela personagem de A Mandrágora, Calímaco, que “uma coisa gera outra e o tempo gera todas”. Porém, aquilo que tornará a sua presença inquestionável, mesmo a alguns daqueles que agora estão prestes a partir, é dar os sinais certos, o principal dos quais é fazer o que disser que vai fazer, e o que fizer seja para ser distribuído segundo o princípio do que é prioritário distribuir e a quem distribuir. Para o que deve contar, é exigir que as leis da República para serem republicanas passem a ser outras, que doravante uns possam diferentes mas não sejam desiguais dos outros.

Dirigente da Renovação Comunista

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