Maria João Rodrigues: “Podemos chegar a um 'New Deal europeu'”

Para a eurodeputada socialista Maria João Rodrigues, a zona euro só conseguirá ser sustentável a longo prazo se avançar na direcção de uma união orçamental.

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É "incompreensível" que Portugal não tenha um banco de fomento operacional Miguel Manso

Numa semana que fica marcada pelo início das negociações entre o Governo grego e as instituições europeias mais o FMI sobre o seu programa de reformas, Maria João Rodrigues, em entrevista ao PÚBLICO, defende que a crise económica europeia é o resultado de uma união económica e monetária inacabada, “que gera desequilíbrios e divergências, em vez de gerar convergência”.

Segundo a eurodeputada socialista, que é também a vice-presidente responsável pelas questões económicas e sociais no grupo dos socialistas e democratas (S&D), o plano de investimento proposto pela Comissão Juncker “é interessante”, mas avisa: Portugal pode perder oportunidades, se não acautelar os seus interesses nas negociações.

A Grécia vai iniciar esta semana as negociações com as instituições europeias (Comissão e BCE) e com o FMI. Como antevê essas negociações?

Vai ser certamente um processo difícil, mas o que está causa é alterar as prioridades do programa de reformas para a Grécia. O que faz sentido é dar prioridade a construir um bom sistema de colecta de impostos, uma administração pública que funcione, um Estado-providência que tenha cobertura universal, em vez das reformas que estavam a ter prioridade no programa até agora. O segundo ponto-chave desta negociação é a margem de manobra orçamental que a Grécia vai ter para levar a cabo essas reformas. A Grécia neste momento já tem um superavit primário, e portanto tem o Orçamento suficientemente equilibrado para lhe ser dado mais tempo, para que possa fazer investimento ao mesmo tempo que reformas.

Mas, com as receitas fiscais no início deste ano a diminuir, teme-se que o Orçamento grego possa já não ter esse superavit primário.

Há de facto esse risco, que decorre de um problema estrutural, que tem de ser reconhecido, que é a Grécia não ter um sistema fiável de colecta de impostos, não só no que diz respeito aos mais ricos, mas às vezes a uma atitude mais generalizada da população. E não há dúvida de que isso tem de ser corrigido. Este clima de incerteza terá levado também algumas pessoas a resistir a pagar impostos, o que é inaceitável.

A primeira lista de reformas apresentada pelo ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, que propõe o reforço da colecta fiscal e a modernização da administração, vai portanto no bom sentido?

Julgo que sim. Aliás, o grupo S&D tomou posição exactamente neste sentido poucos dias após a vitória do Syriza, porque, na nossa opinião, o Syriza, embora exprimindo uma angústia do povo grego que compreendemos perfeitamente, estava a colocar em cima da mesa reivindicações que eram algo irrealistas. Nós sempre achámos que era necessário trabalhar para uma solução de compromisso que pudesse ser aceite pelos parceiros europeus, mas dando francamente mais margem para respirar ao povo grego.

A crise económica afectou sobretudo os países periféricos, mas, apesar de tudo, tanto Portugal como a Irlanda conseguiram completar os seus programas de ajustamento. Há um problema grego, e apenas grego?

Penso que o caso grego tem algumas particularidades únicas. No entanto, o problema grego é também expressão de um problema europeu mais geral, que é termos uma união económica e monetária que gera desequilíbrios e divergências, em vez de gerar convergência. É do nosso interesse, de Portugal e de todos os outros países da zona euro, que esses problemas de concepção da própria zona euro sejam corrigidos –porque, se não o forem, podemos vir a ter os mesmos problemas ao mínimo choque financeiro ou assimétrico.

O presidente Juncker apresentou ao Conselho Europeu de Fevereiro uma nota sobre os próximos passos para aprofundar a governação económica da zona euro. Como encara esse documento?

O presidente Juncker, juntamente com os três outros presidentes [Mario Draghi (BCE), Jeroen Dijsselbloem (Eurogrupo) e Donald Tusk (Conselho Europeu)] receberam um mandato muito claro do Conselho Europeu, que lhes pedia para retomarem a discussão no sentido de se completar a união económica e monetária. Esse mandato dizia expressamente que o objectivo é repor a convergência e a solidariedade na União Europeia, portanto, a meu ver, era um mandato que ia no bom sentido. Mas o documento inicial do presidente Juncker ficou bastante aquém dessa expectativa. É um documento muito curto, que tem um diagnóstico incompleto, e a meu ver incorrecto.

Porquê?

Porque reduz os problemas da zona euro à falta de disciplina orçamental, quando há outros problemas. Não temos verdadeira coordenação entre os Estados-membros da zona euro para sustentar a procura. Não há compromissos dos Estados-membros para garantir que os standards básicos, nomeadamente sociais, são respeitados, estamos até a viver uma pressão para os degradar em muitos países. E ainda menos há aquilo que foi identificado como lacuna desde o início, quando a união económica e monetária foi definida, que é uma capacidade orçamental para compensar aquilo que os Estados-membros já não podem fazer com os seus orçamentos nacionais, porque estão submetidos a uma disciplina comum.

Tem defendido a necessidade de a zona euro se dotar de uma capacidade orçamental. Que estruturas deveriam ser criadas para isso?

Nós tivemos ao longo dos últimos anos um enorme debate sobre essa matéria. Foram basicamente identificadas três soluções para construir essa capacidade orçamental. A primeira hipótese consistiria em dotar a zona euro de um fundo de seguro económico para proteger os Estados que fossem objecto de um choque assimétrico. Esse fundo apoiaria o Orçamento nacional e funcionaria como um instrumento para reduzir uma grande quebra do PIB nesse país. A segunda solução seria um seguro europeu de desemprego, porque, quando um país é submetido a um choque, pode ter um tal acréscimo de despesas sociais por causa do aumento do desemprego que precise de um complemento europeu. Isso requereria da parte dos Estados-membros algum esforço de convergência na forma como gerem o mercado de trabalho. A terceira hipótese seria um fundo europeu de apoio à convergência estrutural que se centraria em apoiar financeiramente os países que precisassem de recuperar a sua competitividade, desde que se comprometessem com um determinado tipo de reformas ou de investimentos.

E como tornar isso politicamente aceitável, quando as opiniões públicas nos países do Norte da Europa estão cada vez mais hostis a transferências para os países periféricos?

Enquanto vice-presidente do S&D, fui mandatada para conduzir este processo, e estou em contacto quer com os comissários relevantes, quer com os ministros, e penso que é na família social-democrata, apesar das diferenças que existem entre os vários partidos que a compõem, que podemos chegar mais facilmente àquilo que eu chamo um "New Deal europeu". Seria preciso um compromisso segundo o qual os países teriam de fazer o seu trabalho de reequilíbrio orçamental e de reformas para aumentar o potencial de crescimento. Mas, em compensação, seriam criados instrumentos europeus de protecção financeira, como a união bancária, de coordenação económica para o crescimento, bem como uma garantia de que os standards sociais não seriam degradados. Para isso ser possível, precisamos de um instrumento de capacidade orçamental. Provavelmente esse tipo de compromisso também envolveria algum esforço de convergência no plano de impostos, porque países como a Alemanha vão levantar essa questão e a meu ver isso faz sentido. Acho que esses são os ingredientes fundamentais para um "New Deal europeu".

O fundo europeu para investimentos estratégicos (FEIE), ou plano Juncker, proposto pela Comissão Europeia, pode ser um primeiro passo para uma política orçamental mais activa a nível europeu?

A questão central é que a Europa tem de voltar a crescer e, para isso, tem de investir. Mas a Europa está dividida entre países em situações completamente diferentes. Há um processo de divergência muito grande em marcha. Portanto, a questão é esta: todos os Estados-membros têm condições equivalentes para investir? Penso que não.

E como reduzir essas divergências?

Primeiro, temos o papel dos fundos estruturais, cujo impacto é importante, mas que não chegam para reduzir divergências deste calibre. O plano europeu de investimento, às vezes também chamado "Plano Juncker", é interessante, porque permite dotar a Europa de instrumentos mais estratégicos para apoiar investimentos que toda a gente sabe que são absolutamente decisivos para a modernização, mas que ainda não encontram o necessário investimento privado, devendo por isso ser alavancados com algum investimento público inicial.

Mas nem todos os Estados vão poder investir de igual modo...

Claro, estamos a discutir precisamente se todos os Estados-membros vão ter iguais possibilidades de participar neste plano. Há sinais de preocupação, porque temos um enquadramento legal deste fundo que não garante esta igualdade entre Estados-membros. Só os Estados-membros que estiverem abaixo dos 3% de défice público é que terão a hipótese de ver neutralizados os seus co-financiamentos para os projectos deste fundo.

Como garantir que Portugal participe plenamente neste fundo de investimento?

O grupo S&D está a explorar uma solução que pode ser muito importante. Se Portugal participar em instrumentos que vão ser desenvolvidos à volta deste fundo através de um banco de fomento, a contribuição nacional também devia ser neutralizada – ou seja, essa participação não devia penalizar o país em termos de disciplina orçamental. Isto quer dizer que Portugal tem o maior interesse em dotar-se de um verdadeiro banco de fomento, que esteja realmente operacional.

Não será difícil ter o banco de fomento operacional até o Verão, altura em que é previsto que o FEIE esteja operacional?

Esse é o ponto em que há um atraso enorme, incompreensível, porque Portugal neste momento só ganha em ter um banco de fomento. Vamos assistir a uma entrada em força dos países que têm bancos de fomento. França, Alemanha, Itália e Espanha já fizeram as suas propostas, usando como base os bancos de fomento.

Mas há o risco de que, para conseguirem atrair dinheiro dos privados, os investimentos apoiados pelo FEIE se concentrem em projectos de baixo risco, nos países que justamente menos necessidade teriam do apoio europeu para encontrar investidores...

Efectivamente, se este fundo não for bem desenhado, corre-se o risco de, em vez de contribuir para reduzir as divergências económicas, possa levar ao seu aprofundamento. Este é o momento em que o Governo – que devia estar a defender os interesses nacionais – deve pugnar por soluções como aquelas que acabo de referir. É agora, não daqui a um mês. Mas não vejo uma posição clara nesta matéria, aliás, em linha com o que tem sido o comportamento deste Governo, que está a ser demasiado passivo quanto a questões decisivas.

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