Argentina fantástica

Uma colectânea de contos que é uma boa amostra de uma das literaturas mais interessantes escritas em castelhano

Algures na década de 1970, o lendário editor italiano (também designer gráfico e coleccionador de arte) Franco Maria Ricci (n. 1937) encontrou-se em Buenos Aires com o escritor argentino Jorge Luis Borges e propôs-lhe dirigir (seleccionando e prefaciando) uma colecção de literatura fantástica a que, muito à maneira borgeana, dariam o nomeA Biblioteca de Babel. Foram, ao longo de alguns anos, publicados (primeiro em italiano e mais tarde em castelhano) cerca de trinta volumes. Por cá, a Editorial Presença decidiu traduzir e publicar essas obras, adoptando o formato original dos livros bem como o design das capas. Saiu recentemente o décimo sétimo volume, Contos Argentinos, onde encontramos histórias da autoria de nomes que, mais do que argentinos, são referências da literatura mundial do século XX: Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar, Manuel Mujica Láinez, ou Silvina Ocampo. Para além destes, encontramos ainda outros menos conhecidos como Leopoldo Lugones, Arturo Cancela e Pilar de Lusarreta, Federico Peltzer, Manuel Peyrou e Maria Esther Vasquez.

O conto que abre a antologia, Yzur, de Leopoldo Lugones (1874-1938), originalmente publicado em 1906, conta-nos a história de um macaco que em tempos trabalhara no circo (onde adquirira o porte e o andar de um “marinheiro bêbado”, e cujo dono teimou em ensiná-lo a falar. Passaram-se entretanto três anos sem que ele conseguisse formar uma palavra. Mas lentamente operara-se no seu carácter uma extraordinária mudança: o olhar aprofundava-se, tinha feições menos expressivas, e passou a adoptar posturas meditativas. Mas na sua última tarde, a da sua morte, aconteceu algo que acabou por, segundo o narrador, dar origem ao conto. Na prefácio à antologia, Borges nota que por alturas da escrita desta história (final do século XIX e inícios do século XX) o Modernismo renovava as literaturas em língua espanhola, sobretudo a poesia, pois quanto à prosa essa influência “não foi além do musical e do decorativo”, mas que a única excepção digna de memória foi o livro de Lugones, Las Fuerzas Extrañas (que inclui o conto Yzur, que segundo Borges é o mais notável de todo o livro).

Dos três autores mais consagrados (Bioy Casares, Julio Cortázar, e Silvina Ocampo) é sem dúvida o conto do segundo que se destaca, Casa Ocupada. Em Buenos Aires, um casal idoso de irmãos habitava sozinho numa casa “espaçosa e antiga”, “profunda e silenciosa”, com uma dezena de quartos e dividida em duas partes. Uma noite ouviram um barulho vindo da sala de jantar ou da biblioteca. “O som chegava impreciso e surdo, como um tombar de cadeiras sobre o tapete ou um afogado sussurro de conversa.” O conto progride num ritmo crescente e num registo de quase horror perante a eminência da tragédia, como se aos poucos o mundo fantástico se fosse apossando da narrativa. Ao contrário de muitos dos contos de Cortázar, esta é uma história escrita de forma canónica, com um narrador-personagem que se recusa a falar de si mais do que o necessário. “Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não conto.”

De entre os contos dos restantes autores menos conhecidos por cá, sobressai A Diligência”, de Manuel Mujica Láinez (1910-1984) – autor do célebre e magistral romance Bomarzo. O conto é retirado do livro Los Ídolos, que segundo Borges não é a sua obra mais famosa “mas pode ser que seja a melhor”. Com a acção a decorrer nos tempos do vice-reinado espanhol, uma diligência dirige-se pela planície argentina de Córdova a Buenos Aires, e entre os passageiros viaja a señorita Catalina Vargas. A sua irmã viúva morreu e cabe-lhe agora a sua imensa fortuna. “Lá fora o sol enlouquece a paisagem”. A meio da viagem Catalina apercebe-se de que há uma nova passageira. Não a viu entrar. Reconhece nela “a fisionomia angulosa de sua irmã, de sua irmã morta”. O final do conto é desconcertante. Mujica Láinez escreveu uma quase obra-prima da narrativa curta. Uma história tortuosa e depurada sobre a sordidez da alma da personagem.

Sendo uma colectânea que não se afasta muito de um certo registo canónico, muito ao gosto de Borges, Contos argentinos é uma boa amostra de uma das literaturas mais interessantes escritas em língua castelhana.

Sugerir correcção
Comentar