Ciência, desenvolvimento e colonialismo na guerra fria

Segundo um think tank norte-americano, em 1969 o cenário mais desejável era a manutenção da soberania portuguesa em Angola até 2000. Entre 18 propostas, estava a introdução da televisão e o lançamento de um programa global de investigação científica.

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Vista aérea de fábrica de celulose em Ganda, Angola, em 1971 Col. Agência Geral do Ultramar, Arquivo Histórico Ultramarino/IICT

O estudo intensivo de Angola realizado pelo Instituto Hudson para o Grupo CUF é um episódio ilustrativo do recurso ao conhecimento científico e tecnológico por parte de um actor não estatal, num quadro que extravasa a escala nacional e colonial. Negligenciados pelas historiografias da descolonização e da guerra fria – dominadas, sobretudo em Portugal, pela ênfase nas vertentes política e geoestratégica –, casos como este são importantes para um estudo aprofundado do colonialismo tardio.

O Instituto Hudson, organização norte-americana vocacionada para os estudos prospectivos, foi fundado em 1961, com a missão de desafiar formas convencionais de pensar. O seu fundador e director, Herman Kahn, tinha trabalhado na RAND Corporation e dado um grande impulso à estratégia norte-americana da guerra fria. Em 1967 publicou com A. J. Wiener, o livro The Year 2000: A Framework for Speculation on the Next Thirty-Three Years, onde se previa que as colónias portuguesas seriam independentes no final do milénio.

No grupo CUF, o maior grupo empresarial português, surgiu a ideia de encomendar ao IH projeções de longo prazo sobre Portugal. Robert Panero, director do IH para o Desenvolvimento Económico, terá argumentado que o futuro do país era indissociável do futuro de Angola. O grupo CUF, com uma presença crescente e diversificada naquele território, embora atrás de outros grupos, aceitou avançar nessa direcção. Além da agenda do grupo CUF, é possível argumentar que os interesses do próprio think tank norte-americano terão sido determinantes no rumo angolano que a pesquisa tomou, em linha com a nova posição da administração norte-americana face à "África portuguesa". Ao IH interessava potenciar encomendas de novos estudos em profundidade, sobretudo no âmbito de políticas públicas. Já a administração de Richard Nixon, eleito presidente dos EUA no ano anterior, optara por colaborar com os regimes brancos da África austral, o que se traduziu no estabelecimento de relações mais cordiais com o governo português e em medidas de encorajamento ao investimento norte-americano no "ultramar português".

De 27 de Agosto a 5 de Setembro de 1969, uma equipa multidisciplinar, que incluía elementos do IH, do Grupo CUF e consultores privados, realizou um estudo intensivo sobre o potencial de desenvolvimento económico de Angola. A metodologia usada já tinha sido ensaiada no Yucatán (México). Consistia em criar um grupo heterogéneo de outsiders e insiders com diferentes competências, que sobrevoariam, em voos de baixa altitude, vastas parcelas do território. Faziam-se aterragens frequentes para um conhecimento mais próximo de zonas consideradas de maior interesse. Também eram feitas viagens de automóvel para uma visão a partir da terra. Em reuniões de trabalho, e sob pressão, deviam emergir novas formas de ver as potencialidades de desenvolvimento de Angola.

No regresso da visita foram elaborados relatórios preliminares individuais, que serviriam de base para discussão na conferência sobre prospectivas de desenvolvimento de Angola que se realizou no Estoril, a 13 e 14 de Outubro de 1969. Nessa conferência, participaram não só os elementos que visitaram Angola, como também Herman Kahn, e foram convidados a assistir membros do governo e do sector empresarial com interesses em Angola. Após a conferência, o IH publicou Angola: Some Views of Development Prospects (2 volumes).

Segundo Robert Panero, o cenário mais provável e desejável, em termos políticos, era a manutenção da soberania portuguesa em Angola (até 2000); e em termos económicos e sociais, um desenvolvimento do território e das populações, sem precedentes, em larga escala e em todas as frentes, com forte investimento de capital norte-americano. Entre as suas dezoito propostas para o desenvolvimento económico de Angola, encontramos projectos integrados como o “represamento do rio Congo” e uma “corporação para o desenvolvimento regional do rio Quéve”, ideias para a extração e industrialização de recursos minerais (petróleo, ferro, entre outros), reconversão industrial do sisal, criação de gado em larga escala para exportação, viticultura, introdução da televisão (nomeadamente como veículo de educação), e lançamento de um programa global de investigação científica.

No fim do seu relatório, Panero afirmava: “Se ali existem as oportunidades que em que acreditamos, [...] então está no âmbito da cultura e da tradição portuguesas tentar, com trabalho árduo, transformar os sonhos em realidades. Foi este o espírito dos navegadores e é ainda a força motriz da vida portuguesa embora hoje bastante sublimada ou reprimida”. Podemos verificar aqui a mobilização de ideias-feitas sobre os portugueses e a sua história, que confortavam a posição do Estado Novo e ajudavam a legitimá-la. Talvez por isso, as ideias que punham em causa as políticas que vinham sendo conduzidas em Angola e as ideias incómodas para o governo português tenham passado despercebidas. Refira-se, nomeadamente, a burocracia excessiva da administração colonial portuguesa, um sistema de crédito arcaico, o problema das transferências, a falta de ambição do III Plano de Fomento, o muito que havia a fazer no campo da educação e promoção social da maioria negra.

Estão ainda por apurar as consequências deste estudo. Segundo Samuel Levy, o Grupo CUF considerou que o âmbito de intervenção requerida ultrapassava o próprio grupo. Isso mesmo terá sido transmitido a Marcelo Caetano por Jorge de Mello. [1] Podemos supor que o fez na esperança de um aceleramento disruptivo do desenvolvimento económico que, na campanha eleitoral, Caetano havia contraposto ao abandono das "províncias ultramarinas» e dos colonos brancos".

O estudo – reduzido à ideia da manutenção do status quo – foi condenado por activistas anticoloniais e cientistas sociais engajados com a causa da libertação africana. Não obstante alusões esporádicas em trabalhos sobre as relações luso-americanas e o império colonial português, a sua importância está ainda por investigar.[2]

[1] Informação prestada por Samuel Levy, que, em 1969, era director na Empresa Geral de Fomento, coordenador da formação de quadros de todo o Grupo CUF, tendo estado, com António Gouveia Portela, no centro de decisão da contratação do IH. Entrevista conduzida por Cláudia Castelo e Luísa Sousa, Lisboa, 24.11.2014.

[2]  Cláudia Castelo (CIUHCT-FC-UL), Álvaro Ferreira da Silva (Nova School of Business & Economics), Ana Paula Silva e Luísa Sousa (CIUHCT-FCT-UNL) têm em curso essa tarefa, a partir dos contributos da história empresarial e da história da ciência e da tecnologia.

Historiadora (CIUHCT-FC-UL)

Esta série é feita em colaboração com os participantes da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, organizada pelo ICS

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