Faltam 1779 enfermeiros nos cuidados continuados só na região Sul

A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados tem vindo a aumentar o número de camas disponíveis (6642 camas, no final de 2013). Mas faltam enfermeiros, profissionais especializados na reabilitação e uma aposta mais sustentada nos cuidados domiciiários.

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As camas nos cuidados continuados foram reforçadas em 12,4%, mas continuam a faltar enfermeiros Nelson Garrido

Faz hoje uma semana que António Carlos Evangelista conseguiu voltar a ser o Dr. Evangelista – e que deixassem de lado o tratamento por Sr. António, que lhe foi apresentado no exacto momento em que foi internado no hospital, no dia 27 de Outubro, na sequência de um acidente vascular cerebral (AVC). Aos 84 anos, para este médico reformado, Dr. não é apenas um título. É a ligação a uma vida dedicada a uma profissão e uma memória que se sobrepõe à fala entaramelada, às alterações de consciência e à perda de alguns movimentos que o AVC lhe trouxe, conta o filho José Grillo Evangelista.

No dia 17 de Novembro o pai teve alta do Hospital Garcia de Orta, em Almada, e os próximos tempos serão passados numa unidade de Almada da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, destinada às reabilitações consideradas de média duração, e onde está há uma semana.

“Temos de ter uma visão holística da pessoa, que é mais do que um doente, tem a sua cultura e vida”, resume a enfermeira Cidália Martins, que coordena a equipa que gere a rede destes cuidados nos concelhos de Almada e Seixal e que funciona no Centro de Saúde Corroios, numa referência à importância de se adaptar a reabilitação consoante o doente com que se está a trabalhar. Porém, a enfermeira reconhece que é cada vez mais difícil conseguir dar resposta aos casos que chegam à rede e que se depara sobretudo com três problemas: falta de vagas, carência de recursos humanos e utentes cada vez mais dependentes e a necessitar de mais apoio nas actividades diárias mais simples, como comer ou tomar banho.

Estes foram precisamente os problemas identificados pelo estudo Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados: Sustentabilidade e Segurança, conduzido pela Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros, e que é apresentado esta segunda-feira. Os dados disponibilizados ao PÚBLICO mostram que nas 44 unidades da região sul que integraram a amostra faltam 659 enfermeiros. Extrapolando os números para as 117 unidades desta zona, seriam necessários mais 1779 enfermeiros em Beja, Évora, Faro, Lisboa, Portalegre, Santarém e Setúbal. Além disso, o número de profissionais especializados em reabilitação ainda é muito baixo – o que condiciona a especificidade da resposta que pode ser dada. O número de enfermeiros necessários foi calculado tendo em consideração o número de doentes, o seu risco, nível de dependência e potencial de recuperação, o que se traduz no número de horas de enfermagem necessárias.

“Compreendemos que haja um processo evolutivo gradual na dotação de equipas, mas hoje temos 97% de taxas de ocupação o que significa que as vagas não estão à espera e que as equipas têm dificuldade em colocar a pessoa na rede a tempo. E se a equipa tem défice de recursos, ainda que seja obrigada a garantir a segurança mínima dos cuidados, não consegue garantir, por exemplo, a recuperação e a reabilitação das pessoas”, salienta Alexandre Tomás, coordenador do estudo e presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Enfermeiros. “Os doentes estão a ficar mais tempo nas unidades para além daquilo que era expectável, pois não há intervenção na recuperação da pessoa, e se ficam mais tempo o potencial de recuperação é menor”, salienta.

“Ainda considerámos durante o internamento no hospital procurar uma unidade privada após a alta. Mas entre isso e uma de cuidados continuados, prefiro mil vezes esta e nem é por uma questão económica, porque o meu pai está no escalão mais alto e paga perto de 800 euros. É porque não a considero um lar, considero uma unidade de reabilitação e foi isso que expliquei ao meu pai. Isso faz toda a diferença”, completa José Grillo Evangelista.

No caso de António Carlos Evangelista não foi necessário atrasar a alta do hospital ou optar por uma resposta privada por falta de vagas na rede pública. Ainda durante o internamento, a equipa de gestão de altas referenciou o doente à rede gerida por Cidália Martins e foi possível encontrar uma cama no tipo de unidade mais indicada, que prevê que os doentes recuperem num período máximo de 90 dias. “Sinceramente penso que o meu pai não precisará de tanto tempo. A recuperação está a ser mais difícil do que no AVC que teve há dois anos, mas pela evolução que tem tido penso que irá para casa mais cedo”, explica José Grillo Evangelista, que destaca o lado “humano” como fundamental para a recuperação. “Quando chegou à unidade, no dia 17 de Novembro, vieram perguntar-lhe como queria ser tratado. Encolheu os ombros. Eu disse, experimentem chamar Sr. António ou Dr. e vão ver a diferença. Chamaram Sr. e ele só abriu um olho. Disseram Dr. e ele abriu logo os olhos e sorriu.”

A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados inclui instituições públicas, privadas e do sector social e disponibiliza várias tipologias de prestação de cuidados. Quando a expectativa é de que seja necessário mais tempo do que os 90 dias ou outro tipo de cuidados existem as Unidades de Longa Duração e Manutenção e para as recuperações que podem ser feitas em 30 dias existem as chamadas Unidades de Convalescença, destinadas a casos como fracturas do colo do fémur, em que ainda há por exemplo um penso que é necessário trocar de forma diária e em casa o doente não consegue ou quando é preciso ensinar o utente a lidar com um saco de colostomia.

Há ainda as Unidades de Cuidados Paliativos onde não estão definidos limites máximos de dias de internamento dada a gravidade das patologias – na maior parte das vezes oncológicas. Em qualquer dos casos há também os cuidados domiciliários prestados pela rede e que podem ser accionados tanto antes de ser encontrada a vaga numa das unidades, ou após a saída, quando o resto da recuperação pode ser em casa. Esta é, segundo Cidália Martins, a “solução ideal e em que se deve apostar”. Ao todo têm mais de 80 vagas deste tipo.

O estudo apurou, ainda, que os 2749 lugares de internamento na região sul estão praticamente sempre com taxas de ocupação próximas dos 100% e que a população atendida é muito envelhecida e dependente. “Neste momento as pessoas nas unidades de internamento da rede em 57,4% dos casos têm dependência total. Isso significa que são incapazes de qualquer actividade associada à mobilidade e mais 39,5% têm dependência ligeira, moderada ou severa, o que significa um total de 97%”, sublinha Alexandre Tomás, defendendo que é para estes dados que importa olhar no momento de ponderar as dotações de enfermeiros.

“Duas pessoas que tenham tido um AVC tiveram a mesma circunstância fisiopatológica. Mas é o que aconteceu depois do AVC que determina a necessidade de cuidados de saúde e que depende do nível de dependência da pessoa. Não posso chegar a uma unidade e perguntar simplesmente quantas pessoas tiveram um AVC”, reforça. O enfermeiro entende que é preciso inverter o paradigma de prestação de cuidados. Mas, mais do que abrir apenas vagas de internamento, Alexandre Tomás considera que o futuro passa por manter os doentes em casa e ter profissionais de enfermagem disponíveis para “formar e dar mais apoio aos cuidadores”.

Neste momento, as pessoas que cuidam do doente, familiares ou não, têm direito a durante 90 dias deixarem de ter o doente em casa e integrarem-no numa unidade de internamento para poderem descansar. “É no Natal, Páscoa e Verão que temos mais pedidos”, refere Cidália Martins, que no global de todos os internamentos deu resposta a 1064 em 2013. Este ano, o número no início de Novembro ia já em 996. Cidália Martins considera que para haver mais respostas no domicílio é necessário reforçar a capacidade de articulação entre os apoios da comunidade e as autarquias, para ser mais fácil estabelecer “parcerias com as câmaras ou as juntas de freguesia” para dar resposta a coisa simples como adaptar a casa dos doentes e tornar possível que os cuidados sejam dados no domicílio.

“Não defendemos que as autarquias façam a gestão das unidades de saúde, mas podem criar as condições habitacionais para que as pessoas estejam em segurança nas suas casas”, completa Alexandre Tomás. Essa é a vontade de José Grillo Evangelista, que acredita que num par de meses o pai recuperará o suficiente em termos cognitivos e de marcha para poder voltar para junto da mulher.

Olhando para os lugares de internamento a nível nacional, segundo os dados que constam do último Relatório Anual Sobre o Acesso a Cuidados de Saúde nos Estabelecimentos do SNS e Entidade Convencionadas, publicado em Julho, entre 2012 e 2013 houve um aumento de 731 lugares em todo o país, o que representa um crescimento de 12,4% para um total de 6642 camas. A subida na região de Lisboa e Vale do Tejo atingiu os 20,3% (chegando às 1524 camas). Foi o segundo maior aumento do país, depois do de 26,5% no Algarve.

Mas, ainda assim, a região de Lisboa (onde se inclui Almada e Seixal) tinha a menor cobertura: 219 camas por cada 100 mil habitantes com mais de 65 anos. A média nacional é 343. A maior cobertura populacional em camas existe na região do Alentejo (593 camas por 100 mil habitantes com 65 ou mais anos), seguindo-se o Algarve e o Centro. Quanto a equipas domiciliárias, o cenário repete-se: na região de Lisboa e Vale do Tejo existem 525 lugares por 100 mil habitantes com 65 ou mais anos. A média é 707.

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