Longa viagem para a eternidade

Uma monstruosa alegoria da perdição da Europa na contagem decrescente para a Segunda Guerra Mundial

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Tudo em Katherine Anne Porter (1890-1980) é singular e extravagante, tanto no que diz respeito à sua vida privada como à sua carreira literária. Esta texana arrebatada, equiparada a Faulkner e a Hemingway, viveu 90 anos turbulentos — duas guerras mundiais, revoluções, a Grande Depressão, crises financeiras, quatro casamentos, numerosos amantes e uma instabilidade constante — e deixou uma obra de grande impacto, nomeadamente no que diz respeito ao conto (as Collected Stories ganharam o Pulitzer e o National Book Award), ao ensaio e ao jornalismo.

O seu único romance, este A Nave dos Loucos, escrito ao longo de mais de duas décadas e publicado pela primeira vez em 1962, deu-lhe uma enorme notoriedade, principalmente graças à adaptação para o cinema, de Stanley Kramer (1965).

Depois de uma infância negligenciada, Porter tentou, em 1914, a vida de actriz em Chicago e mais tarde em Dallas, onde contraiu uma tuberculose galopante que a incapacitou até 1917 e lhe deu tempo para considerar uma carreira no jornalismo, seguindo o exemplo de uma das suas companheiras de sanatório que fora para a Europa como correspondente de guerra. Liberta da doença, dedicou-se à crítica de teatro e à crónica social, mas voltou a ser internada quando um surto de gripe devastou os Estados Unidos, como já acontecera na Europa. Esteve entre a vida e a morte — o que serviu de experiência para um dos seus contos mais famosos, Pale Horse, Pale Rider —, mas salvou-se in extremis, graças a uma terapia experimental que incluiu doses violentas de estricnina. A partir de 1919, já em Nova Iorque, no ambiente boémio de Greenwich Village, entregou-se inteiramente à escrita e trabalhou numa revista ligada à promoção do México, um país que ela visitou amiúde — foi lá que, em 1930, começou a escrever A Nave dos Loucos — e que se tornou a sua segunda pátria. Um interesse exacerbado pelas manifestações de histeria colectiva, que presenciou durante a ascensão do nazismo, levou-a a escrever sobre as perseguições religiosas na América e sobre o célebre julgamento de Sacco e Vanzetti, os dois anarquistas, imigrantes italianos, condenados por homicídio.

A Nave dos Loucos

, exemplo “imperfeito” e exaltante do modernismo na literatura, é uma “monstruosidade” que retrata um tempo de deformidades morais, cívicas, políticas e sociais. Os seus intervenientes, aprisionados num navio — o que remete para o sanatório de

A Montanha Mágica

, de Thomas Mann, com a mesma atmosfera claustrofóbica —, são empurrados, num espaço sem referências como é o oceano, para um final (uma “chegada”) trágico e inexorável. Porter estilhaça sistematicamente a narrativa e persegue, como uma câmara de filmar desgovernada, as várias personagens, à medida que revela o que elas fazem, vêem e pensam. Há uma referência explicita à representação do tema, que tem origem em Platão, do barco dos pestíferos à deriva, com a sua carga de seres humanos cada vez mais distanciados da realidade — do porto, da terra, da “civilização” — e transportados, fantasmagoricamente, para um abismo de desespero e alienação.

A história, dividida em três capítulos — O Embarque, No Alto-mar, Os Portos —, acompanha as fases de um grupo heterogéneo de pessoas que embarca em Vera Cruz, no México, num navio com destino a Bremerhaven, na Alemanha. Está-se em Agosto de 1937 e a autora estabelece, desde o início — tal como numa peça de teatro —, o nome e as principais características das personagens que, ainda em terra, se vão juntando para o embarque, se entreolham com desconfiança e evidenciam subtilmente os preconceitos, tiques e inseguranças que irão agudizar-se durante a viagem. Há o grupo dos alemães que voltam à gloriosa pátria — cada um mais odioso do que o outro — os rígidos suíços, os alegres estudantes cubanos, os distantes e tímidos mexicanos, um sueco conflituoso, os desdenhosos e venais espanhóis e os americanos ingénuos. (Há ainda um doente terminal, um aleijado e dois gémeos maléficos completando o “quadro” que poderia remeter para Hieronymus Bosch.) É possível entrever já um clima malsão, propício a conflitos, a choques culturais e morais, a traições e a jogos de poder.

O Vera zarpa finalmente em direcção a Cuba — primeira escala — e, no princípio, parece estabelecer-se uma certa ordem, enquanto os passageiros procuram retomar rotinas e hábitos. De vez em quando, os ecos do que se passa na terceira classe, a abarrotar de deportados (mandados embora depois da ruína do negócio da cana-de-açúcar), de miseráveis, de brigões, de crianças e mulheres (876 almas, precisa a autora), chegam aos passageiros de primeira classe que encaram com horror e fascínio essa amálgama de gente tratada como gado que entrevêem pela grade que permite lobrigar as profundezas do navio. As reacções dos que comentam os acontecimentos “lá de baixo” servem para definir as idiossincrasias de cada um: dos indiferentes aos preconceituosos, dos catastrofistas aos hipócritas, passando pelos mais caridosos, que defendem um melhor tratamento para aqueles indivíduos olhados como uma massa informe e sub-humana, todos acabam por veicular os seus próprios terrores. E o anti-semitismo, o fundamentalismo religioso, o conflito de gerações, os extremismos políticos, a amoralidade e a indiferença marcam toda a acção a ferro e fogo enquanto as tensões se agudizam, ao ritmo lento do avanço do navio. De uma forma ou de outra, todas as pessoas são banais, mesquinhas, manipuladoras, sentimentais, ou simplesmente imaturas e perdidas, como os dois jovens pintores americanos — Jenny e David — que, ingenuamente, partem à aventura em direcção a um continente que irá soçobrar dentro em breve. O comandante é a imagem de um tirano — disfarça o seu desprezo por tudo e todos e deseja intensamente ter pretextos para encher os calabouços do navio — e o médico de bordo, ele próprio doente, melancólico e derrotado, representa o “bom alemão” de uma estirpe prestes a desaparecer e que já não tem forças para contrariar o ímpeto devastador da História.

Todo o romance funciona como uma alegoria da perene vulnerabilidade e da imparável loucura dos seres humanos — não existe uma única personagem que seja heróica, gloriosa, exemplar — centrada numa altura específica, a da escalada dos regimes totalitários. A viagem é uma travessia marcada pela incerteza, mas o que espera os viajantes é a danação e não a salvação.

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