Confiar no olhar

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Miguel Manso

A amizade entre Pedro Casqueiro e Ana Jotta é um dado importante para se perceber como constroem universos visuais tão intensos. Não se explicam mutuamente, mas a presença mútua lança um luz especial sobre a obra um e do outro. Que foi estimulada pela qualidade do olhar que dizem o outro ter

Ana Jotta e Pedro Casqueiro são dois pintores. Os seus trabalhos são momentos fundamentais da história da pintura portuguesa. Goste-se ou não, a maneira como têm exercido o seu trabalho só pode ser motivo de admiração. Não se pode dizer que neles domine um assunto, uma matéria ou um estilo, mas as obras atravessam muitos tempos, muitos espaços, muitas cores, muitas formas. Podemos vê-los a partir da pintura clássica ou da pop-art, através das colagens ou de desenhos, da música ou da literatura, entre outras possíveis entradas.

São duas obras cultas, densas e exímias no fazer. E apesar da proximidade artística, geográfica e sentimental, mantêm-se universos distintos e autónomos. A amizade entre ambos é um dado importante para se perceber melhor como constroem universos visuais tão intensos e significativos. Não se explicam mutuamente, mas a presença mútua lança um luz especial sobre a obra um e do outro.

Partilharam ateliers e admiram o trabalho de cada um. Não fazem o mesmo tipo de pintura, mas existem passagens subterrâneas. Cada um deles tem duas exposições em Lisboa neste momento. Na Culturgest cada um tem uma individual: Jotta, uma antológica, Conclusão da Precedente, que reúne trabalhos dos últimos nove anos; Casqueiro, Marginalia, já apresentada no Porto e agora com novo fôlego. Depois, na Galeria Miguel Nabinho, Ana mostra um conjunto de pinturas sobre parede, formas geométricas monocromáticas, e Pedro, na Appleton Square, um conjunto diferenciado de pinturas, desenhos, onde abundam referências à música e a um certo modo de relação com a linguagem e muito distante do formato de exposição associado a este artista. São quatro exposições que permitem não só regressar a dois dos mais importantes pintores da recente arte portuguesa, mas igualmente perceber o modo como os seus trabalhos partilham uma mesma disposição, um mesmo espírito. A junção permite evocar a única exposição que fizeram juntos em 1995 na galeria Alda Cortez. Nessa altura fizeram algumas obras conjuntas (algumas das quais integram Marginalia), mas existiam outras obras individuais. O importante na altura não foi a tentativa de obra conjunta, mas tornar evidente as contaminações acolhidas nas obras de cada um. Para Casqueiro, essa exposição assentava numa ideia de complementaridade e deram-lhe o nome Jotta e Casqueiro. Não denunciava uma junção temática, nem tão pouco uma constatação das afinidades de género ou estilos. Diz Casqueiro: “Ela nasceu da nossa amizade e convívio. Foi uma ideia espontânea e não a constatação de que os nossos trabalhos eram próximos ou que estávamos a trabalhar sobre os mesmos problemas.” Até porque, acrescenta Jotta, “muitas vezes as nossas coisas não são nada coincidentes.”

O primeiro atelier que partilharam foi no Elevador da Bica nos anos de 1995 onde havia outros artistas. Casqueiro já lá estava, Jotta foi lá parar. Depois, e até 2013, escolheram sempre partilhar o mesmo local de trabalho. Não se tratou de uma proximidade exclusivamente geográfica e sentimental. Como diz Casqueiro: foi sobretudo uma relação de confiança no olhar.

Uma confirmação

A existência lado a lado é o que marca a cumplicidade artística. Não há uma obra comum, mas essa proximidade “está presente nas obras de cada um.” Que foi estimulada pela qualidade do olhar que dizem o outro ter. “Pedimos muito a opinião um ao outro. Não há discussões de filosofia da arte, mas somos o primeiro espectador um do outro. Um ‘anda cá ver’ que pode não ter consequências no desenvolvimento do trabalho, mas que é importante. Sempre partilhei as minhas coisas com a Ana não só porque ela estava próxima, mas porque confio na qualidade do olhar que ela tem.” Uma confiança sem resultados práticos nas decisões sobre os caminhos a tomar, mas, como Ana explica, essa confiança é “uma confirmação. Muitas vezes mesmo já se sabendo o que se vai seguir, a opinião do Pedro é importante como elemento exterior à obra.”

Para Ana esta relação artística não é afectiva, mas diz respeito à qualidade do trabalho de Pedro. “Ele é um bom artista. E eu também sou uma boa artista. E isto é uma coisa rara. E é uma coisa que acho admirável.” “Eu posso acrescentar” – Casqueiro – “que o convívio com a Ana e as coisas que ela faz me dão alguma liberdade e abrem caminhos para coisas mais objectuais que fogem ao formato pintura. Há uma influência subtil. Não é uma questão de estilo, mas a experiência de alguém que vive a arte de maneira mais descontraída que eu.” “É verdade”, responde Jotta, “sou menos apanhada por um género e muito espontânea na minha relação com a arte e com o meu trabalho artístico. Porque no meio da tempestade visual em que estamos submersos, faço muito uso directo das coisas do dia-a-dia e da história da arte.”

Poder-se-ia desenvolver longamente este tema do modo como o fazer e criar de uma obra de arte incorpora sempre elementos exteriores, outros pensamentos, outros artistas, outras obras. Mas no caso destes dois esta relação permite perceber o modo como o quotidiano, de forma eclética e subterrânea, penetra nas suas pinturas e, no caso de Ana Jotta, esculturas e instalações. Uma constatação que as exposições na Culturgest transforma em evidência. As Notas de Rodapé de Ana Jotta (conjunto variado de elementos como caixas de cremes, papéis escritos à mão, recortes de jornais, imagens retiradas de diversos contextos) e toda a Marginalia de Casqueiro (objectos muito diferenciados, como colagens sobre papel, pinturas obre persianas japonesa, colagens de recortes de revistas, etc., são mostradas como se fossem pinturas) exibem o ecletismo como ambos constroem o olhar. Para os dois, a música, a linguagem, caixas de cartão ou capas de cassetes são motivos de trabalho, ou seja, de pintura. Não está em causa a afirmação do quotidiano como o lugar da arte e a estetização do banal, mas o modo como usam materiais que seriam estranhos e distantes das linguagens comuns das belas-artes, como os elementos originários da pintura.

A essas coisas Jotta chama lixo. “E o lixo pode ser usado de muitas maneiras e cada um o transforma como quer. Lixo é uma maneira de dizer tudo por onde se passa, se lê ou se ouve. Tudo coisas que ambos transformamos, porque um artista é um transformador: está sempre à frente do nariz aquilo com que o artista usa como matéria. Um artista é um criador e, por isso, transforma. Mas isso sou eu que sou uma clássica. E gostava de ter sido uma pintora como o Poussin ou o Courbet.”

Ainda que Casqueiro tenha uma obra totalmente concentrada na pintura e em estratégias de construção de imagens, para ele a pintura não tem esta aura: “É uma actividade igual a tantas outras.” Na sua exposição na Appleton Square o modo como a concepção da imagem pintada está ao mesmo nível de muitas outras coisas é um princípio fundamental do trabalho do artista.

As coisas da pintura

Em ambos os casos, a insistência na pintura teve a natureza de resistência.

“Durante muitos anos não havia pintores e em determinados momentos a pintura ficou esquecida. É um trabalho mais solitário e demorado e se calhar muitos artistas não estão para isso ou talvez esteja tudo farto de pintura. Eu já ouvi a morte da pintura dezenas de vezes.” A estas palavras de Casqueiro, Jotta acrescenta que ser pintor não é uma actividade que um jovem artista ambicione: “Estar virada para uma parede com um pincel é uma imagem muito aborrecida.”

Os modos como persistem tem muitas expressões: desde os objectos que Casqueiro coloca na parede e com os quais nos relacionamos como pinturas, até aos múltiplos objectos escultóricos que Jotta faz, mas que reenviam sempre para o universo pictórico da pintura. Na exposição dele são muito diferenciadas as coisas que estão nas paredes, mas todas elas são para ser vistas como pinturas: “Não são imagens construídas como se constrói uma pintura e os materiais são diferentes daquele com que se constrói uma imagem, mas não há esculturas. São pinturas feitas com outras matérias, mais brutas e menos transformadas como normalmente acontece na pintura.”

Esta insuperável ligação ao fazer da pintura não tem a mesma expressão no caso dela, porque muitas vezes os esforços de Jotta não se materializam numa imagem “chata, isto é, plana.” É uma espécie de insucesso que não inviabiliza o modo como a artista afirma: “Sou uma pintora. Acontece que muitas vezes não me consigo reduzir à chateza da pintura bidimensional e é-me mais fácil trabalhar com volumes. Às vezes, os materiais resvalam para coisas que não estão previstas à partida.”

É importante sublinhar o facto de nenhum deles trabalha a partir de uma ideia estabelecida antes do próprio fazer da obra de arte; o trabalho é o único assunto, aquilo que dita os desenvolvimentos, paragens ou retornos. Pode dizer-se possuírem uma relação física com o fazer das obras: o trabalho faz parte do corpo. Um fazer físico que nunca se conseguirá perceber inteiramente. Porque a arte “é feitiçaria pura ou um espécie de número de ilusionismo. Uma ilusão que serve para chamar a atenção das pessoas para o têm à frente do seu nariz.” E é para guardar esta magia, este irracional inalcançável que é a condição do gesto artístico, que Ana Jotta resiste tanto às conversas sobre as suas exposições: “As coisas são para ver e não para ser ditas. O trabalho do artista é físico e manual e as coisas que faz falam por si. É verdade que as conversas tornam as coisas mais fáceis, mas os objectos são visuais e as pessoas têm é de os ir ver.”

 

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