Os Metallica e uma nação negra (pintalgada de laranja)

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O primeiro dia do Optimus Alive, quinta-feira, teve o "metal" como destaque e congregou mais de 40 mil. Não se esgotou aí. Entre os magníficos TV On The Radio ou o funk dos Bombazines, uma bem-vinda esquizofrenia para os melómanos.

Não sabíamos se eram exactamente os 40 mil esperados pela organização. Ali, no Passeio Marítimo de Algés, pareciam mais. Pareciam uma nação de crentes em movimento sincopado. Braços erguendo-se e cabeça rodopiando em coreografia certamente improvisada, mas que, à distância, parecia ter sido cuidadosamente ensaiada. Não foi uma visão nova. Os Metallica estavam em palco e nós, que cá os vimos três vezes nos últimos três anos, sabemos que é assim que funciona.

James Hetfield no palco a incitar o povo. O povo, imenso povo de negro pintalgado a laranja (colorido garantido pelas ofertas dos patrocinadores), a responder que sim, que se os Metallica amam Portugal, Portugal ama os Metallica. Os riffs a soltarem-se, a bateria tonitruante a anunciar-se e a coreografia espontânea protagonizada por 40 mil a impressionar novamente.

O primeiro dia do Optimus Alive teve o "metal" como personagem principal e os fiéis, como sempre, responderam em massa. A apoteose aconteceu às 23h30, quando a banda de Kill 'Em All subiu ao palco. Duas horas. Duas horas com o novo álbum, Death Magnetic, e canções como o single The day that never comes. Duas horas pelas quais passaram épicos como One e as indispensáveis labaredas e fogo-de-artifício que a acompanham, o Sad but true que se berra sem moderação ou a baladinha Nothing else matters que, enfim, faz parte do catálogo e ajuda a afagar o turbulento coração metaleiro. Nada de adiposidades, tudo seco e directo ao assunto. Novo fogo-de-artifício, uma derradeira correria pelas rampas em palco e o último encore. Eles que não se querem ir embora, o pessoal que espera mais qualquer coisa. Ei-la que chega: Seek and destroy, hino thrash e atitude punk. Rápido e certeiro. Nada de afagar corações, uma última explosão.

Não foi certamente o melhor concerto que lhes vimos por cá. Mas foi um concerto dos Metallica e o povo, uma vez mais, prestou-lhes a reverência devida. Todo o povo? Não, que o primeiro dia do Optimus Alive teve o "metal" como destaque, mas não se esgotou nele.

Há três palcos a funcionar em simultâneo e isso é bom, pela variedade de escolhas; e isso é mau, porque, a determinada altura, o pobre melómano olha para a folha de horários e toma consciência do estado de esquizofrenia em que viverá nas horas seguintes. Ou seja, vêem-se Os Golpes, os primeiros do dia, a dizer-nos, nas suas camisas de linho e nos lenços atados à cintura, que o rock'n'roll é feito de electricidade e romantismo e a oferecer-nos canções para prolongar eternamente o Verão. Mas depois d'Os Golpes, e antes dos Metallica, deixou de haver sossego.

Mazgani, no palco Optimus Discos, mostra o novo fogo que o anima e, qual pregador Caveano, qual esteta da canção, à Howe Gelb, vocifera apocalipses. Mais, luta para que o ouçamos, quando à tenda chega o som das épicas descargas eléctricas dos Mastodon, que punham o público a levantar poeira no palco principal. Tudo se frui em passo rápido. Os Bombazines do funk movido a teclado borbulhante e voz de soul woman impressionante (a magnífica Marta Ren). Os Lamb Of God, de Richmond 'fucking' Virginia, a convidarem o pessoal a passear com eles no Inferno.

Pouco depois, estamos nós imersos no universo de inocência pervertida dos Tiguana Bibles de Kaló, Vítor Torpedo e da belíssima Tracy Vandall (Nancy Sinatra num filme de Lynch ou standards esquecidos num de Tarantino), quando a redoma de fantasia é brutalmente quebrada: os Machine Head chegavam ao palco principal e deixava de haver espaço para qualquer serenidade.

O melhor da noite chegaria no outro extremo do recinto. Relógio apontando as 21h20, o festival começava a entrar em hora de ponta. Em passo apressado, saltámos sobre corpos descansando no chão e desviámo-nos dos grupos atarefados em volta de pizzas. Chegámos ao que interessava: TV On The Radio.

Um saxofonista, Stuart Bogie, do colectivo afro-beat Antibalas, a planar sobre aquela música inclassificável, qual mestre da vanguarda nova-iorquina (ou seria feiticeiro de Canterbury?). Duas vozes a descobrir harmonia nos contrastes: o falsete reconfortante de Kyp Malone e a tensão e insatisfação que Tunde Adebimpe põe em cada verso. E canções onde cabem funk e dub, rock de arestas expostas e gospel futurista, onde cabem Peter Gabriel, George Clinton e o desejo de ser xamã eléctrico contagiando a multidão. Dear Science, o último álbum da banda de Brooklin, foi uma semidesilusão, um passo em direcção ao reconhecível. Ao vivo, os TV On The Radio foram um recuo feliz: intrigaram e contagiaram. Depois deles, acelerou a contagem decrescente.

Os Vicious Five a incendiar a plateia e tudo a berrar a canção manifesto Lisbon calling. Os mascarados Slipknot e a sua música convulsiva disfarçada de espectáculo circense: o baterista contrariando a gravidade numa plataforma rotativa e a rebeldia adolescente de People = Shit. Os Klaxons e o seu rock revestido de carapaça electrónica: o povo continua a encher o palco Super Bock, o povo continua a dançar. E, ali, não parará. Porque depois chega o duo Crystal Castles e é impossível resistir à hiperactividade da longilínea Alice Glass: a mulher que salta para cima da bateria e que se entrega nos braços do público é uma performer excessiva e um concerto dos Crystal Castles é tanto ela quanto a massa electrónica faiscante e o ritmo incessante que a faz mexer. Naquele palco, uma ilha de pessoal mui indie e mui colorido.

Já o outro extremo do recinto não era uma ilha, era uma nação. Os Metallica estavam em palco e era impressionante ver a imensa coreografia da multidão vestida de preto.

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