Ir ao fim do mundo com Béla Tarr

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Uma caixa com quatro títulos fundamentais no cinema contemporâneo.

Caixa Béla Tarr

Danação, Tango de Satanás, As Harmonias de Werckmeister, O Cavalo de Turim

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Muitos portugueses terão descoberto Béla Tarr com a recente estreia comercial de O Cavalo de Turim. O facto de se tratar do último filme do húngaro - que se obstina em dizer que não filmará mais - levanta um problema a todos os que, nesta ocasião, tenham sido conquistados para Tarr: é que tudo leva a crer que não vale a pena esperar por novos filmes e, portanto, para conhecer mais Tarr é preciso andar para trás. É aqui que esta caixa de DVDs dá imenso jeito.

No mercado português já estava editado O Homem de Londres (2007), o filme anterior ao Cavalo de Turim, e um dos mais atípicos títulos de Tarr (adaptação de Simenon, rodagem fora da Hungria, na Córsega). Com esta caixa, que traz quatro filmes, fica ao dispor do público português aquilo a que podíamos chamar, com as ressalvas e reservas que estas tipologias sempre oferecem, a "fase da maturidade" de Tarr. Recuamos até 1988 e a Danação, continuamos com o monumental Tango de Satanás (1994) e com o intrigante As Harmonias de Werckmeister (2000) até chegarmos outra vez ao Cavalo de Turim. São quatro títulos fundamentais e não só num contexto Tarr - são quatro títulos fundamentais no cinema contemporâneo, especialmente o Tango de Satanás (cuja importância pode ser medida pelo facto de, na recente sondagem da Sight & Sound para apurar os "melhores filmes de todos os tempos", ter obtido um inusitado número de votos, quarenta, classificando-o como o "36º melhor filme de todos os tempos").

Escrevemos, com hesitação, "fase de maturidade". Mas parece certo que Danação foi o momento em que Tarr, com obra iniciada no final dos anos 70, reuniu um conjunto de características que não mais deixou de percorrer nem de explorar. Um grupo de colaboradores também, especialmente o escritor Laszlo Krasznahorkai, que daí para a frente assinou o argumento de todos os filmes de Tarr (e o Tango e Werckmeister são mesmo adaptações de romances seus). Embora o director de fotografia não tenha sido sempre o mesmo (para além de Fred Kelemen houve Gabor Medvigy), Danação também foi o encontro com o decisivo preto e branco, espesso, contrastado e granuloso, que se tornou quase uma trademark do cinema de Tarr. E é um filme espantoso, que conviria não reduzir a um "balão de ensaio" para Tango de Satanás - aquela Hungria lamacenta e chuvosa, onde toda a gente é paupérrima e tristíssima, para além de servir como retrato de uma sociedade (comunista, ainda) em estertor, inaugura um "mundo mental", onde o apocalipse está sempre à espreita (ou até já veio sem se dar por ele) e tudo é desolação ou "danação". Não há esperança para os homens - nem mesmo na belíssima música de Mihaly Vig que passa no Titanik Bar (que nome...) - e dessa ausência de esperança não mais Tarr deixou de falar. O Tango de Satanás, com as suas mais de sete horas de duração, é o monumento erguido a essa falta de esperança. Se o comunismo era uma desgraça, o fim do comunismo uma desgraça foi - há uma camada da humanidade que sofre sempre, aconteça o que acontecer. Experiência quase física, tão entusiasmante como extenuante (que o visionamento em DVD convida a atenuar, "partindo" o filme em "episódios", mas que se deve tentar ver como deve ser: todo de enfiada), é uma visão da aridez - paisagística, humana, metafísica - como ninguém tentava desde Stroheim (Greed), numa estrutura em planos-sequência e caminhadas para lado nenhum que influenciou não poucos cineastas (o Van Sant de Gerry em diante, por exemplo). Em As Harmonias de Werckmeister a História vem atravessar o filme de inúmeras maneiras, explícitas e implícitas. Há tanques - russos - como se Tarr evocasse as memórias de 56; e há como sempre, uma enorme expectativa, travellings que voltam sempre ao mesmo sítio, e uma baleia embalsamada que é, na obra de Tarr, a coisa mais parecida com o monólito do 2001 de Kubrick. O último filme da caixa é O Cavalo de Turim, fim de uma festa que nunca chegou a acontecer, filme onde, de facto, acaba tudo: a vida, o sol, a comida, a luz.

A editora - a Midas Filmes - anuncia para data futura uma nova caixa, contendo o "princípio" de Tarr, os cinco filmes que dirigiu entre 1977 e 1985. Para já, regalemo-nos.

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