“Fala-se muito da Coreia do Norte, mas a vitória sobre o Brasil representa muito mais”

O PÚBLICO inicia com António Simões (Mundial 1966) uma série de entrevistas com figuras que integraram as selecções portugueses nos cinco Campeonatos do Mundo em que participou.

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António Simões fala sobre o Mundial 1966 José Manuel Ribeiro/Reuters

Foi o Mundial da Inglaterra, do golo na final do qual ainda não há certeza se a bola entrou e o da estreia dos controlos anti-doping. Foi o Mundial do roubo da Taça Jules Rimet e da sua recuperação pelo cão Pickles, do boicote das nações africanas e da rivalidade Adidas-Puma. O Mundial de 1966 foi também o da estreia de Portugal, logo com um terceiro lugar, e o Mundial de Eusébio, mas também de António Simões, considerado o melhor extremo-esquerdo da competição.

Para a glória benfiquista, então o mais novo do plantel nacional (22 anos), a vitória mais marcante foi obtida contra o Brasil, não contra a Coreia do Norte. “A presença do Pelé beneficiou-nos”, admitiu Simões, referindo-se ao facto do astro brasileiro não estar a 100%.

PÚBLICO: Depois do Mundial 1966, percebeu-se que não faltou muito a Portugal para ser campeão. Mas o que é que pensavam os jogadores antes do arranque da prova?
ANTÓNIO SIMÕES: Quando chegámos a Inglaterra não éramos praticamente nada, já havia jogadores com sucessos europeus – os do Benfica tinham ganho a Taça dos Campeões Europeus, os do Sporting a Taça das Taças –, mas não tínhamos um estatuto de selecção que despertasse muita atenção. Depois fomos ganhando, o público e a comunicação social começaram a falar de nós, sobretudo depois da vitória sobre o Brasil, e começaram a admitir que éramos candidatos. Nós fomos fazendo o nosso caminho. Na altura não havia estrelas, havia ídolos, o que é muito diferente, e nenhum de nós entrou na prova a pensar que seríamos campeões do mundo. Mas depois de ganhar à Coreia do Norte, nos quartos-de-final, pensámos que poderíamos vir a ser campeões. E, de facto, estivemos muito perto. Foi uma grande geração. Ganhar seria fantástico, mas um eventual triunfo não traduziria a real organização do futebol português na altura, que era menos profissional do que o existente por exemplo em Espanha ou em Inglaterra.

Sabia que a única derrota do Brasil com Pelé em campo num Mundial foi com Portugal?
Não sabia disso. Quando ganhámos, ficámos com uma sensação extraordinária, fora do comum: tínhamos acabado de ganhar ao Brasil e ao Pelé. Fala-se muito da Coreia do Norte, é um jogo mais mítico, mas para mim a vitória sobre o Brasil, por causa do estatuto do adversário, representa muito mais do que a vitória sobre a Coreia. Quando uma equipa está a perder 3-0 e ganha 5-3 é transcendente, especialmente numa competição como o Mundial. Mas esse jogo não apaga a vitória sobre o Brasil, mas, como aconteceu depois, de alguma forma aligeirou, retirou grandeza, ao enorme triunfo sobre o Brasil. 

Como decorreu o jogo com o Brasil, na altura o bicampeão mundial?
Começámos a vencer cedo com um golo meu. Depois fizemos o 2-0 e dominámos o Brasil, que teve sempre dificuldade em chegar à nossa baliza e não teve grandes oportunidades. Mas reduziu para 1-2 [a 20 minutos do fim] e aí sim o jogo mudou. Mas perto do fim fizemos o 3-1. O Brasil nunca esteve perto de ser si próprio nesse jogo. É preciso não esquecer que o Pelé não se magoou nesse jogo, já vem magoado do jogo com a Bulgária, com uma rotura. Ser utilizado contra nós foi um acto de desespero depois da derrota sofrida com a Hungria. Mas deu mau resultado. O Brasil jogou com dez. A presença do Pelé no jogo beneficiou-nos.

Só marcou três golos na selecção, um deles ao Brasil…
Eu baixo no interior do campo, faço um ‘rodriguinho’ a um adversário, meto no Eusébio que vai à linha na esquerda e centra e eu faço um movimento à ponta-de-lança na área. Parece que adivinhei que a bola ia saltar das mãos do Manga e depois a única alternativa que tinha era fazer um pequeno chapéu.

Mas o jogo mais recordado é o Portugal-Coreia do Norte (5-3), entre as duas selecções estreantes desse Mundial…
O Otto Glória chamou-nos a atenção que a Coreia do Norte tinha eliminado a Itália, e assistimos a esse jogo, mas mesmo com a chamada de atenção não entrámos nada bem no jogo. Estávamos a dormir e fomos surpreendidos pela velocidade estonteante dos coreanos. Aquilo esteve muito mal [0-3, aos 24’]. Mas recordo-me que de cada vez que chegávamos à área da Coreia criávamos oportunidades, no entanto eles também chegavam com muita facilidade à nossa. Lembro-me de falar com o Eusébio: ‘Vamos fazer golos, o que é preciso é marcar”. Tínhamos que estar mais concentrados na defesa e também sabíamos que não seria possível correrem assim o jogo todo. Otto Glória teve depois uma palestra marcante ao intervalo, foi um enorme puxão de orelhas. Conseguimos responder, mas também porque tínhamos uma grande equipa e grandes jogadores. E raramente acontece não ganharem os melhores. Esse jogo ficou ligado ao nome do Eusébio, e justamente pois marcou quatro golos, mas houve vários jogadores que jogaram muito bem.

O que é que o seleccionador disse ao intervalo?
Uma das coisas foi: ‘Tiveram coragem de vencer a minha pátria e contra jogadores que ninguém sabe quem são estão cheios de medo?”, mas numa linguagem bem mais popular. Foi um raspanete importante naquele momento. Combinou um grande raspanete com palavras de afecto no final.

Foi um triunfo tão festejado que se esqueceram do Otto Glória no estádio…
[risos] Naquela altura, quem é que se ia lembrar do treinador?

Eusébio foi a grande figura individual da prova, mas você foi um dos seus melhores “amigos” nas assistências e brilhou o suficiente para ser nomeado o melhor extremo-esquerdo do torneio. O que significou integrar a equipa ideal?
Era jovem, mas já se falava um pouco de mim. Contudo, é num Mundial que se faz a consagração de um futebolista. Ninguém é consagrado até chegar lá. A minha internacionalização futebolística chegou com esse Mundial, embora eu já fosse campeão europeu com o Benfica. Ser considerado o melhor extremo-esquerdo do Mundial é óptimo, apesar de só mais tarde me ter apercebido melhor da verdadeira dimensão dessa distinção.

A “guerra” entre a Puma e a Adidas também chegou aos "Magriços"?
Foi a primeira vez que se deu a guerra das marcas a nível global. Apareceu um senhor de cada uma das marcas no nosso hotel. Tivemos a oportunidade de fazer algum dinheiro extra, mas nada de especial. Fui um deles, recebi algum dinheiro por jogar com essas chuteiras, no caso da Puma, enquanto alguns colegas jogaram com Adidas. Um dos nossos jogadores [João Morais] até queria jogar com uma chuteira de cada marca. É um episódio que mostra a forma meio anárquica como era o futebol nesse tempo, bem diferente do que é agora.

Trocar de camisola com os adversários no final é normal. Como era na altura?
Ainda tenho as camisolas dos jogos com Inglaterra e Brasil, quis guardá-las para mim. Na realidade, era difícil, não havia muitas camisolas de reserva como agora. Estavam muito bem contadas. Para lhe dar um exemplo, se quisesse ficar com a camisola do Benfica, e tínhamos uma por ano, tinha de a pagar.

O que a selecção tem agora que vocês não tinham na altura e vice-versa?
O Cristiano Ronaldo é o Eusébio dos anos 60. A importância é a mesma. A diferença que vejo, sem menosprezar os outros que estão à volta dele, é que na nossa equipa havia uma meia dúzia de jogadores que acompanhavam o Eusébio que o Cristiano Ronaldo não tem, especialmente se pensarmos que estamos muito dependentes dele. Nos jogos com a Hungria e a Bulgária, o Eusébio não fez exibições transcendentes, mas outros jogadores estiveram muito bem. Pelo contrário, nesta selecção não vejo ninguém que tome conta do jogo sem que o Ronaldo tenha uma prestação elevada, ninguém capaz de o substituir num dia menos bom. Na nossa selecção havia um sexteto muito forte - Coluna, Jaime Graça, eu, Eusébio, José Augusto e Torres. Em vários jogos, os cinco à volta de Eusébio foram capazes de perceber que ele não estava a aparecer ao seu nível e substituíram-no na responsabilidade. Nesta selecção, se não tivermos um Cristiano Ronaldo à altura, de onde aparecerá o golo? Mesmo respeitando o valor dos jogadores da selecção actual, havia mais recursos em 1966.

Até que fase pode Portugal chegar no Brasil?
Não me surpreende que consiga chegar às meias-finais ou até à final. Mas, à partida, não está ao nível de Brasil, Argentina, Espanha e Alemanha. Está num lote de equipas que podem surpreender, como a Bélgica, a Colômbia ou até mesmo a França. Mas pelos jogadores que tem e pelo estatuto que construiu nos últimos 20 anos é difícil não pensar que pode estar nos cinco ou seis primeiros. Oxalá que chegue ao pódio.

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