A democracia não é uma questão de vitórias e derrotas

De tão evidente, a afirmação deveria ser dispensável. Mas não achando entrada nos herméticos crânios da maioria dos nossos políticos, nem nos dos comentadores que esmiúçam resultados de eleições, há que repeti-la e explicá-la, nem que seja a nós mesmos, para que o ruído mediático não nos confunda e não nos coloque na língua palavras que não pensámos e que nos fazem pensar distorcidamente.

E então digamos, depois de ouvir "os derrotados" a felicitar a contragosto "os vencedores da noite" e estes, na réplica, a acusar o "mau perder" dos outros: se a democracia é representativa, então a retórica da guerra (ou a do jogo que a substituí) é absolutamente inadequada.

Quando se diz que um partido ganhou as eleições, está-se implicitamente a dizer que tem carta branca para «dominar» sobre os outros. Derrotados tornarem-se servos não é propriamente um paradigma que hoje alguém aceitasse, politicamente falando. No entanto, é isso que subentendidamente se aceita. Como se se estivesse a dizer: podem estrebuchar; quem mandará a partir de agora seremos nós. Deviam sentir-se ofendidos os eleitores que votaram nesse partido… e os outros. Os que votaram nesse partido, porque, se acreditam na democracia, o Bem Comum deve ser perseguido pelo seu e pelos demais partidos; acreditar que seria possível alcançá-lo sozinho, segundo uma perspectiva unilateral, é caucionar a prática do partido único ou, pior, do pensamento único. Ofendidos também se deveriam sentir os que votaram nos outros partidos, porque naturalmente não deixam, por serem minoritários, de ter (se o partido no qual votaram elegeu deputados) quem os represente no Parlamento. Pode-se sorrir a isto. Será o sorriso amargo e desesperado do cidadão impotente ou do realista cínico. Pode chamar-se a isto muita coisa, ingenuidade é que não é. A menos que se creia que a democracia é ela própria uma ingenuidade (e, depois dos resultados destas europeias obtidos pelos partidos de extrema, talvez nem seja muito censurável dizê-lo, sem pudor, agora…). Mas se não nos ofendemos e políticos, que se dizem democratas, passam a noite do apuramento de resultados a enxovalhar-nos, como que a dizer-nos que o nosso voto não conta senão como arma de arremesso no circo da retórica polemista, é porque a democracia está doente, não o princípio da representatividade que se tornou irrisório! Em democracia todos nos deveríamos sentir representados (até os que votaram em branco). Ninguém se deveria sentir derrotado, ou vitorioso. "Governo e oposição", s outro cliché que envenena a verdade da política (que algures, ainda deve existir, mesmo que a expressão "verdade política" não tenha outra aparência senão a do paradoxo). Deveriam as ditas minorias sentir-se a salvo das ditas maiorias, ou não se sentirem sequer ameaçadas. Deveria haver instrumentos para pedir contas quando aqueles que nos representam não cumprem o seu papel; pertençam à dita maioria, pertençam à dita minoria. Deveria.

Coisa da ética, o dever. Coisa que grande parte dos políticos despreza, mas com que mais tarde ou mais cedo se terão de confrontar. Porque a ignomínia desmascara-se a si mesma, e a prova inequívoca de que o rei vai nu é a adesão em massa, nestas eleições… à abstenção. Se vitória houve foi da abstenção. Enquanto continuam a digladiar argumentos quem fica a perder com a vossa cegueira crónica são os eleitores. Mas se quiserem, senhores políticos e comentadores coniventes, poderão continuar a farsa, jogando às vossas guerrinhas e guerrilhas. Até ao dia em que…

Professor

Sugerir correcção
Comentar