Vender ou não vender, eis a questão Miró

A venda é uma questão de dinheiro mas também de cultura.

O caso Miró é o nosso país no seu melhor. Em primeiro lugar, há a destacar a opacidade de todo este processo. Não sabemos exactamente o que se passou, como se passou, quem fez o quê. Afinal parece que, contrariamente ao que chegou a ser noticiado, a exportação não autorizada das obras não terá sido efectuada por mala diplomática, segundo informou uma fonte oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros. O que quer dizer que continuamos sem saber como e quando é que as obras saíram do país. Um mistério para resolver em “devido tempo”.

Mas a opacidade envolve todo o processo. Não se consegue compreender os percursos dos diversos pareceres e decisões dos organismos e entidades nacionais envolvidos e que vieram a desembocar na decisão da leiloeira Christie’s de não proceder à venda das obras. Uma decisão sensata e que mostra que a Christie’s, contrariamente ao Governo português, não “brinca em serviço”. As trapalhadas foram tantas que não conseguimos sequer fingir que sabíamos o que estávamos a fazer, ao menos para “inglês ver”.

Uma das evidências que ressaltam daquilo que, até agora, se conseguiu perceber foi que, ao longo deste processo, terão coexistido duas perspectivas paralelas – isto é, que nunca se encontraram – sobre o assunto.

Por um lado, a perspectiva economicista, para quem o património é dinheiro, representada pelo Governo, accionista único das empresas proprietárias das obra de Miró, que olhou para o assunto como uma questão meramente de números. Havia um activo que era necessário liquidar para cobrir um passivo sem fim. Esta foi a sensibilidade – se é que se pode utilizar este termo – dos nossos governantes, que não seria particularmente lamentável e até seria expectável, se não incluísse o Secretário de Estado da Cultura, a quem se exigia um pouco mais.

Por outro lado, temos a perspectiva artística, em que património é cultura, encarnada pela Direcção-Geral do Património Cultural, e que se concretizou nos pareceres dePedro Lapa, director do Museu Berardo e de David Santos, director do Museu do Chiado, que defenderam a permanência das obras no país, perspectiva esta que parece não dar qualquer valor às questões económicas subjacentes ao imbróglio.

Todos conhecemos o provérbio que diz que “quem não tem dinheiro, não tem vícios”. Mas também sabemos que se em relação ao cidadão comum, nem sempre o mesmo corresponde à verdade, em relação ao Estado, não corresponde de todo. Na verdade, o Estado, mesmo não tendo dinheiro, sempre o arranja para os seus vícios, sejam eles assessores ministeriais ou quaisquer outros adereços absolutamente “necessários e indispensáveis” às mais diversas clientelas. Por isso, muitos portugueses terão pensado: os quadros ao menos estão aí e podemos gozá-los, já o produto da sua venda vai desaparecer sem nunca se perceber para onde foi.

Estas duas perspectivas, num país e num Estado menos esquizofrénicos, teriam acabado por se encontrar em alguma esquina institucional e, nesse momento, seria possível construir uma saída inteligente, sensata e compreensível para todos nós.

A mim, em abstracto (porque não conheço a colecção, nem tenho elementos suficientes para ter certezas), não me custa admitir que a colecção viesse a ser vendida, se não na sua totalidade, numa parte substancial, para, de alguma forma, se diminuir o “buraco BPN”, ao mesmo tempo que ficariam cá algumas das obras particularmente significativas, que justificassem o sacrifício económico. Que diabo, um país que comprou submarinos por atacado, também pode comprar uns “bibelots” para os decorar.

Mas para isso, teria sido preciso que o Secretário de Estado da Cultura tivesse assumido publicamente a existência destas duas perspectivas e, bem assim, a sua vontade e a vontade do governo de tomarem uma decisão transparente e fundamentada, mesmo que discutível.

A sensação que dá é que a decisão de venda, com base na visão economicista, andou a correr, às escondidas, na busca do facto consumado, legitimado pelo despacho do referido Secretário de Estado enquanto que a corrente patrimonial/artística se desenvolveu – ou melhor, asfixiou - dentro de umas quaisquer catacumbas burocráticas.

Claro que, como todos também sabemos, “Deus escreve direito, por linhas tortas” e, agora, as obras vão regressar a Portugal, o que permitirá que as coisas que “não correram bem”, segundo o primeiro-ministro, corram agora de forma magnífica e transparente, permitindo aos portugueses aprofundar os seus conhecimentos sobre o conceito de património nas suas diversas vertentes.

Por último, bem fez o tribunal administrativo em não “proibir” o Ministério das Finanças de “alienar o acervo das obras de Miró”. Pese embora as ilegalidades cometidas ao longo de todo o processo e o facto de o acervo pertencer ao Estado, a questão é, essencialmente, política e é nesse plano que deve ser discutida e decidida.

Advogado
 
 
 
 

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