Referendo no Egipto carimba derrube de Morsi e reforço dos militares

Novo texto constitucional deverá ser aprovado. Críticos receiam reforço do poder do exército.

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A candidatura à Presidência do general Abdel Fattah al-Sisi é vista como um dado adquirido após a aprovação da nova Constituição MOHAMED ABD EL GHANY/reuters

É a primeira vez que os egípcios são chamados a votar depois de os militares terem derrubado o Presidente islamista Mohamed Morsi, em Julho do ano passado, e poucos esperam uma surpresa no resultado. O referendo à nova Constituição, que começou terça-feira e acaba quarta, deverá dizer "sim" às alterações propostas pelos actuais líderes do Egipto e, por extensão, a uma mais do que provável candidatura à Presidência de Abdel Fattah al-Sisi, o general acusado de ter orquestrado a queda de Morsi e a decapitação da Irmandade Muçulmana.

Mais do que um simples voto, os eleitores egípcios estarão também a carimbar o fim da falhada experiência democrática no país, que durou pouco mais de dois anos, entre a queda do ditador Hosni Mubarak e o derrube do islamista Mohamed Morsi. O que virá depois ninguém sabe, mas os relatos recolhidos pelas agências internacionais por estes dias mostram que os defensores do “sim” estão divididos em dois campos: os que estão fartos da instabilidade no país e que acreditam num futuro mais livre e próspero.

“É claro que vou votar, e é claro que vou votar no ‘sim’. Depois de tudo por que passámos nos últimos dois anos, o que queres que diga? Precisamos de estabilidade e é isso que a Constituição nos vai trazer”, disse Ahmed Rashid, de 26 anos, ao correspondente do jornal britânico The Guardian no Cairo.

Dizer que a proposta de alteração da Constituição desenhada por Mohamed Morsi (e aprovada em referendo há pouco mais de um ano) é pouco consensual não é dizer muito sobre a situação actual no Egipto – da direita à esquerda, religiosos ou seculares, o único padrão continua a ser o de que não existe padrão algum.

A Irmandade Muçulmana, que passou de organização mais forte do Egipto a “organização terrorista” em menos de um ano, por decreto do Governo interino, apelou aos seus apoiantes que se abstenham no referendo, por não atribuir qualquer legitimidade ao acto eleitoral.

No lado do “sim” estão socialistas, liberais, sociais-democratas, mas também os ultra-conservadores do Al Nour, que defendem a sharia, a lei islâmica, como parte integral da Constituição. Do outro lado, dos que se batem pelo “não”, há trotskistas e islamistas moderados. Os jovens do movimento 6 de Abril, que lutaram na Praça Tahrir pela queda de Hosni Mubarak, abstêm-se, mas por razões muito distintas das defendidas pela Irmandade Muçulmana.

O primeiro dia de referendo ficou marcado por confrontos entre apoiantes da Irmandade Muçulmana e a polícia, de acordo com as informações do Governo egípcio. Pelo menos 11 pessoas foram mortas, com os confrontos mais violentos a terem lugar em Sohag, a Sul do Cairo.

Para os opositores da Constituição aprovada por Mohamed Morsi, o novo texto representa um avanço, ao proibir partidos políticos “com base na religião, raça, género ou geografia”, o que na prática impede a formação de partidos religiosos. Para além disso, os futuros Presidentes poderão cumprir dois mandatos de quatro anos e, pela primeira vez, poderão ser destituídos pelo Parlamento. Apesar de o islão se manter como a religião do Estado, a nova Constituição garante também alguma protecção às minorias e consagra a “igualdade entre homem e mulher”.

O principal ponto de fricção é o facto de os opositores considerarem que o novo texto não vai tão longe quanto seria de esperar ao fim de três anos que custaram milhares de vidas ao país. Em particular, temem o reforço do poder dos militares, que asseguraram a transição política após a queda de Hosni Mubarak, em 2011, e que assumiram um controlo ainda mais musculado com a deposição de Mohamed Morsi, dois anos depois – de acordo com o novo texto da Constituição, o ministro da Defesa do Egipto será designado pelos militares nos próximos oito anos e os civis poderão ser julgados em tribunais militares por “ataques directos” contra os seus membros ou propriedade.

Para além dos episódios de violência registados ontem, os dias que antecederam o referendo ficaram também marcados por uma forte perseguição contra os defensores do “não”. A correspondente da BBC no Cairo, Orla Guerin, fala mesmo numa “campanha distorcida”, com a campanha pelo “sim” a não dar tréguas nos media locais, tanto estatais como privados – o partido Egipto Forte, formado pelo antigo candidato à presidência Abdel Moneim Aboul Fotouh, denunciou que 35 dos seus membros foram detidos quando tentavam colar cartazes com apelos ao voto no “não”, pelo que anunciaram na segunda-feira que iriam boicotar a votação.

O think tank Carnegie Endowment for International Peace, um dos mais influentes do mundo, descreveu o processo eleitoral como “viciado e não democrático”, mas os actuais líderes do Egipto já tiraram as suas conclusões – e elas não se resumem à aprovação de uma nova Constituição. “Sem dúvida que o governo interino vai apresentar os resultados como uma legitimação do derrube de Morsi. Falta saber se vai ser essa a percepção fora do Egipto e dos principais opositores do governo”, disse à BBC Hisham A. Hellyer, analista dos think tanks Brookings Institution e Royal United Services Institute.

O referendo vai ser acompanhado por várias organizações egípcias, por 83 representantes da Democracy International e por uma pequena delegação do Carter Center. Os resultados finais deverão ser conhecidos entre sexta-feira e sábado.
 

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