Na China, há uma geração crescente de “crianças deixadas para trás”

Peritos chineses alertam para problemas emocionais e psicológicos das crianças que crescem longe dos pais. Wu Hongwei e Wang Yuan viveram os primeiros anos da vida da sua filha longe dela e já se arrependeram. Em Fevereiro, prometem, a família estará unida.

Beibei vve com a avó na aldeia onde o seu pai nasceu
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Beibei vive com a avó na aldeia onde o seu pai nasceu William Wan/The Washington Post
A família junta na recente visita que Beibei fez aos pais na cidade
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A família junta na recente visita que Beibei fez aos pais na cidade William Wan/The Washington Post

Os fregueses de uma barbearia da cidade de Jianba, no Sul da China, encontraram-na recentemente fechada, com uma nota curiosa na porta. “Caros clientes, recebi um telefonema da minha filha ontem. Estou há tanto tempo longe que ela já nem sabe chamar-me 'Papá'. Peço-vos uma semana fora para visitar a minha família”.

O recado, fotografado por um transeunte, foi postado na rede social chinesa equivalente ao Twitter e tornou-se rapidamente viral. Reflecte a crescente ansiedade do país em relação às “crianças deixadas para trás”.

Mais de 61 milhões de crianças – um quinto das crianças da China – vive em aldeias longe dos pais. A maioria descende de camponeses que afluíram às cidades, numa das maiores vagas migratórias da história da Humanidade.

Durante três décadas, a mão-de-obra barata dos migrantes ajudou ao crescimento da máquina económica gigante que é a China. Mas os trabalhadores nas cidades são de tal maneira esmagados com custos elevados e com longas horas de trabalho que muitos mandam os filhos para o campo viver com familiares mais velhos.

O barbeiro da nota pendurada na porta, Wu Hongwei, e a mulher deixaram a filha, então de nove meses, com os avós numa aldeia remota. O casal pensara, na altura, que a distância de 550 quilómetros não seria uma barreira.

Telefonavam todos os dias e diziam à criança “A mamã ama-te” e “O papá tem saudades tuas”. Colaram fotos deles pelas paredes de cimento do quarto dela na casa dos avós. Mas, quase dois anos depois, chegaram a uma conclusão gritante: “Somos completos estranhos para ela”, disse Wu.

Wu, de 24 anos, deixou a pequena aldeia de Zhaishi nas montanhas escarpadas da província de Hunan há oito anos. Ter ficado significaria trabalho de quebrar as costas por apenas três dólares por dia (2,20 euros) – e era quando houvesse trabalho. O jovem, alto e esguio, comprou um bilhete de autocarro para a cidade de Zhangzhou, onde tinha um tio que o levou para uma formação de barbeiro não-remunerada. Wu mudou-se depois para Zhuzhou, onde conseguiu um emprego por 500 dólares (367 euros) por mês.

O nascimento de Beibei
Foi nesta cidade que Wu conheceu Wang Yuan, uma mulher de gargalhada contagiante. Os amigos de Wang tratavam-na por “Baozi”, ou pãozinho, por causa das bochechas rechonchudas. O barbeiro cortejou-a com a sua guitarra e músicas populares. Por um tempo, a vida na cidade parecia cheia de possibilidades para os recém-casados. A filha, Beibei, nasceu em 2011.

Para tomar conta da filha, Wang, de 33 anos, largou o emprego de vendedora de telemóveis. O marido trabalhava horas extraordinárias, cortando cabelo desde manhã até às 11 da noite.

A princípio, as coisas resultaram. Pagavam pela casa uma renda mensal de 100 dólares. Tal como muitos trabalhadores migrantes, Wu tinha também de ajudar os pais aldeãos: 170 dólares iam mensalmente para eles.

Mas o bebé foi entretanto desmamado e precisava de leite em pó – um produto caro na China, onde os pais suspeitam das marcas locais baratas, muitas vezes adulteradas. Isso acontecia mesmo com marcas de qualidade média vendidas por pelo menos 100 dólares por mês, um quinto do rendimento mensal do casal. “Não tínhamos escolha. Precisávamos ambos de trabalhar”, disse Wang, cujos pais estavam demasiado doentes para poderem ajudar.

Então, em Maio de 2012, o casal viajou para a aldeia de Wu – uma esgotante viagem de 14 horas de autocarro, dois comboios e motorizada –, e entregaram o bebé aos cuidados dos pais dele.

Parecia uma solução óbvia. Quase todos os jovens casais da aldeia de Wu tinham feito o mesmo, de modo a poderem ter os seus empregos nas cidades. Isso até permitiu a Wu e a Wang porem algum dinheiro de parte para o seu sonho de terem a sua própria barbearia.

O casal confortava-se com a ideia de que Beibei estaria melhor no campo. “Não queremos que ela suporte a pressão da vida na cidade, que pense sempre em coisas materiais”, disse Wang. “Queremos que seja feliz”.

Os primeiros meses foram martirizantes. “Eu dormia agarrada aos pequenos objectos dela que tinham ficado”, disse Wang. “Chorava constantemente”. O marido, um homem tranquilo, concentrou-se no trabalho e nos cortes cabelo a 2,45 dólares cada, de modo a poder enviar dinheiro para casa.

Visita à aldeia
Três meses depois de terem entregue a filha aos avós, o casal regressou à aldeia, ansioso pela visita. Assim que entraram em casa, Beibei escondeu-se deles. “De cada vez que tentávamos abraçá-la, ela gritava pela avó e agarrava-se a ela”, recordou Wang. A dada altura, o casal perguntou à filha onde estavam a mãe e o pai. Ela correu para as fotos na parede, não para eles.

Com os avós à volta, Beibei era uma criança brincalhona, que crescera calma e levava muitos dos seus dias a cantar para as montanhas. Não entendia o chinês que a mãe falava, porque aprendera o dialecto étnico da aldeia. E a mãe não entendia as poucas palavras que a menina dizia. “Ela ama acima de tudo a avó”, disse Wang, que se tem esforçado por não sentir inveja por isso. “Quando se magoa, é para a avó que ela corre”.

Durante a viagem, o casal comprou numa cidade próxima brinquedos e pãezinhos doces para conseguir a atenção de Beibei. Para pegar na filha, o casal esperou que a avó a adormecesse com uma canção de embalar, depois meteram-se sorrateiramente na cama, a avó tirou os braços com que a abraçava e eles rodearam-na com os seus. “Aquelas poucas horas de noite”, disse Wang, “foram preciosas”.

No final da segunda visita, em Dezembro último, tinham finalmente ensinado a filha a dizer “mãe” e “pai”. “Mas a forma como diz ‘mamã’ não é mais do que um nome para ela”, disse Wang recentemente. “Há alguém chamado ‘mamã’, mas isso não tem significado”. Um dia no Outono passado, os avós de Beibei telefonaram para contar que alguns parentes – um casal recém-casado – tinham-lhes feito uma visita e levado brinquedos para Beibei. Quando a criança viu o jovem casal com brinquedos e guloseimas, chamou-lhes “mãe” e “pai”. “Custou-nos profundamente”, disse Wang.

Wu e a mulher tinham finalmente posto de parte dinheiro suficiente para abrir uma barbearia num pequeno espaço, mas, quando ouviram a história, decidiram ir à aldeia. De partida, afixaram apressadamente a nota na porta. Muitos dos que a viram online deixaram comentários lamentando a natureza brutal da economia moderna da China. “As pessoas têm pago demasiado para conseguirem viver”, dizia um. “Saltam-me as lágrimas porque me revejo neles os dois”, dizia outro.

Nos últimos anos, o fenómeno das “crianças deixadas para trás” tem suscitado crescente atenção. Os peritos chineses alertam para problemas emocionais e psicológicos das crianças que crescem longe dos pais. São crianças que têm muitas vezes piores notas na escola e estudos sugerem que desenvolvem tendências crescentes de suicídio e abuso de álcool.

Mas, nas cidades, as crianças migrantes enfrentam problemas também: é-lhes muitas vezes vedado o acesso às escolas e aos cuidados médicos do sistema público, a não ser que os pais tenham autorizações de residência. E amiúde as populações urbanas discriminam as famílias rurais, considerando-as grosseiras e sem educação.

O que é ser mãe
"O campo tem sido bom para a Beibei”, disse recentemente a avó, Yang Peiyun, de 51 anos. “A comida aqui é limpa e o ar não é poluído, como o da cidade”. Mas acrescentou: “Não há futuro para ela na aldeia. Não há nada, a não ser montanhas”.

Por altura da chegada do Inverno, o casal pediu à avó da Beibei que a trouxesse até à cidade. À medida que a menina subia os degraus do apartamento, segurando a mão do pai, franziu a sobrancelha e perguntou: “De quem é esta casa?” “É a casa da Beibei”, responderam-lhe os pais, mas ela abanou a cabeça. Nessa noite, quando Wang tentou deitar-se com ela, Beibei recusou. A correr para a avó, gritava: “Não quero a mãe”.

Recordando-se destas palavras no dia seguinte, Wang limpava as lágrimas, à porta da barbearia. “Quero tanto ensinar-lhe o significado real de uma mãe”, disse ela. “Mãe é quem nos dá à luz. É quem nos ensina a andar, a falar e a cantar. A mãe é quem nos cria. É a pessoa mais próxima de nós”.

Wang e Wu decidiram então trazer a filha para a cidade e ficar a viver com eles. Ainda não sabem como vão ultrapassar todas as dificuldades financeiras que o plano comporta, mas já têm uma data-limite: o início de Fevereiro, depois do Novo Ano chinês. “Já perdemos muitas coisas, como os primeiros passos dela, as primeiras palavras”, disse Wang. “Mas ainda é pequena. Não é tarde para ela aprender o que significa verdadeiramente ter uma mãe”.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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