Os portões do Soweto abrem-se lentamente a todos na África do Sul

Dentro do Soweto, está o township de Orlando West, onde um Mandela intocável viveu e sobrevive ao desencanto popular com a nova liderança da África do Sul. Aqui, aplaudiram-se os votos de Obama por um mundo com líderes que sigam o exemplo do ícone da libertação.

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Memorial na antiga casa de Mandela, no Soweto AFP/ALEXANDER JOE

Old Potchefstroom era o nome da estrada que liga Joanesburgo ao Soweto. No fim do apartheid, passou a chamar-se Chris Hani Road, em homenagem ao líder do Partido Comunista Sul-Africano assassinado em 1993.

O destino da estrada, para quem segue em frente, continua a ser Potchefstroom, cidade universitária onde se formaram alguns líderes do Partido Nacional, mentores do regime do apartheid. Saindo à direita, está Diepkloof, um township (bairro pobre) que nunca mudou o seu nome em afrikaner.

“A ideia de Nelson Mandela era mudar alguns nomes mas não todos”, diz Justice Buthelezi, produtor e realizador da South African Broadcast Corporation (SABC), televisão estatal. “Ele achava que devíamos guardar alguns dos símbolos do passado para nos lembrarmos de onde vimos e sabermos que aqueles foram tempos difíceis”.

Diepkloof é um dos townships que juntos formam o Soweto (nome criado a partir das primeiras letras de South West Townships). As casas de zinco alternam com as de tijolo. Algumas foram acrescentadas, em sinal de que algo, mesmo que simbólico, melhorou na vida das famílias que lá vivem. Algumas casas são muito pequenas, e continuam a existir barracas. Mas também há casas com pequenos canteiros floridos.

Pela beira da estrada ou nos baloiços de um parque infantil que antes não existia, crianças brincam numa rua com pequenas lojas, oficinas ou cibercafés, a caminho de Orlando West, o coração da luta anti-apartheid.  

Galerias e cafés espaços com exposições de fotografia abriram nos últimos anos na Vilakazi Street, onde moraram o arcebispo Desmond Tutu e Nelson Mandela antes de ser preso, na casa que hoje é um museu. Algumas pessoas sobem e descem a rua, brancos e negros que continuam a deixar flores e mensagens de pesar pela morte de Mandela, enquanto duas colunas num camião do Congresso Nacional Africano (ANC), com um grande retrato do Presidente Jacob Zuma, despejam música para a rua.

São muitas as pessoas que aqui dirão “a independência não fez nada por nós”. Jovens e velhos para quem o nome de Mandela é intocável, o Presidente que “liderou bem” o país antes de outros líderes “deitarem tudo a perder”, diz Thoko Mashinini que se lembra de, na década de 1950, brincar na rua com os filhos do primeiro casamento de Mandela com Evelyn Mase.

Hoje, mais do que desiludida, Thoko Mashinini está revoltada. Recebe por mês um subsídio de 1300 rands do Governo (cerca de 100 euros) e está, há mais de uma década, na lista de espera para receber uma casa do programa de redução da pobreza, instituído pelo Governo. Com 67 anos, partilha a sua casa de sempre com toda a família, incluindo pais, filhos e netos. Mesmo assim sorri, e o sorriso chega ao seu olhar muito azul, quando recorda as palavras do Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, na cerimónia oficial na véspera em homenagem a Nelson Mandela. “Fiquei feliz quando ele disse que gostaria de ver os líderes de hoje seguirem as pisadas de Mandela.”

Os políticos devem ouvir estas coisas, diz Thoko Mashinini que decidiu não votar em 2014 para escolher o próximo Presidente. “As eleições servem apenas para os políticos fazerem promessas que não cumprem.” Por isso, entende bem os apupos populares das bancadas contra o Presidente Zuma, durante a cerimónia no grande estádio FNB, a que assistiu num dos ecrãs colocados ao ar livre no Soweto.

O desencanto que sente está a crescer e é o mesmo que partilha com muita gente em Orlando West e outros townships do Soweto. “A independência não fez nada por nós.”    

A independência é como aqui se chama a libertação dos negros e o fim do regime do apartheid, que muitos começam a contar a partir da data da libertação de Nelson Mandela em 1990. Foi quando os negros, que viviam confinados aos townships, puderam experimentar passar a linha que os separava dos bairros das classes média e alta dos sul-africanos brancos, onde até então se deslocavam apenas para serem os criados de patrões brancos.

Hoje, o percurso que Marylin Crutchley faz todos os dias de manhã para ir trabalhar, é exactamente inverso ao que centenas de milhares de negros faziam para ir trabalhar. Ela é branca e o patrão é um negro do Soweto. Sakhumzi Maqubela é um empresário bem sucedido que, a partir do nada, criou um oásis, num bastião da pobreza e do desemprego jovem que dispara na cidades. O seu restaurante em absoluta expansão tem o seu nome – Sakhumzi –, uma grande esplanada e um terraço no primeiro andar, em madeira, e foi construído na casa onde cresceu.  

Um mundo desconhecido

Sakhumzi começou com quatro funcionários em 2001 e hoje tem 70. Todos, incluindo as cozinheiras, são do Soweto. Todos menos Marylin Crutchley, que viveu até aos 21 anos sem nunca vir aqui. Não era por viver longe. Mas porque nunca pensou nisso, como se este mundo, desconhecido dos brancos, não existisse. “Eu nem sabia onde era o Soweto”, confessa.

Os muros invisíveis do passado “a separar as comunidades ainda existem”, reconhece. Gosta do espírito do patrão que sonha em dar uma oportunidade ao Soweto, reinventando-o, trazendo “negócios” que podem ser lucrativos e criar empregos.

Por causa dela, o avô, com 88 anos, e o pai, visitaram, também eles pela primeira vez, o Soweto, que acolhe mais de dois milhões de habitantes e começa a receber a visita de sul-africanos brancos.

A maioria continua a ter a ideia do Soweto como um lugar proibido porque inseguro. “Mas este é um novo Soweto, não o Soweto de há 30 anos” e um lugar onde Marylin Crutchley circula tranquilamente à noite quando sai do trabalho. “Na África do Sul, as pessoas precisam de abrir os olhos e deixarem de lado esse medo.” Os sul-africanos dos subúrbios brancos que começaram a experimentar vir aqui, quando se realizou o Mundial de Futebol de 2010, (porque o Soccer City não era muito distante), “vibraram com a alegria e vida deste lugar”, conta. E isso contribuiu para quebrar, mais um pouquinho, as tais barreiras invisíveis mas ainda presentes.

Futebol e piratas de Orlando

“A reconciliação está no desporto”, diz entusiasta Justice Buthelezi, ao passar o estádio de Orlando, onde apenas se jogava futebol e recentemente passou a acolher também jogos de râguebi. “Mandela tinha razão: o desporto une as pessoas.” Justice Buthelezi, que é parente afastado do líder do Partido Inkatha na província do KwaZulu Natal, nunca gostou de râguebi, o desporto do opressor. Recentemente aprendeu a apreciar. Sempre jogou futebol, e é adepto do Orlando Pirates, o clube fundado no township de Orlando, e que este ano chegou à final da Liga dos Campeões da Confederação Africana de Futebol (e perdeu para um clube egípcio), diz JV com orgulho.

Em criança, os pais, os dois professores, mandaram-no para um colégio interno na Swazilândia, país estrangeiro mais próximo, para fugir ao sistema de ensino bantu, um sistema de ensino inferior criado pelo regime do apartheid para os negros. “Foi a forma de ter uma boa educação. Os jovens que podiam, aqui dos townships, faziam o mesmo”, conta.

Justice formou-se depois como realizador de programas na televisão estatal, a South African Broadcast Company (SABC), que a partir de 1980 lançou dois canais nas línguas locais africanas (isizulu, isixhosa, sesotho e setswana) para a população negra – a SABC 2 e a SABC 3. “Antes era só a SABC”, uma televisão exclusivamente em língua afrikaner dos boers.

Foi um gesto, como outros, de um regime isolado e pressionado internacionalmente desde que a polícia atirara a matar sobre estudantes durante a Revolta do Soweto de 1976 (Soweto Uprisings) por um sistema educativo melhor. Foi quando a fotografia de Hector Pieterson, um jovem de 13 anos morto pela polícia, e já sem vida nos braços de um outro activista, correu mundo. “Foram tempos muito duros”, lembra Justice Buthelezi, passando no regresso de novo pela Chris Hani Road.

Chris Hani foi assassinado em Abril de 1993 por um activista de extrema-direita. Uma mulher branca de origem afrikaner arriscou a vida para o denunciar, lembrou mais tarde Mandela. O risco de uma guerra civil, com o início de motins, levou à marcação das eleições de Abril de 1994, as primeiras livres.

Na noite da morte de Chris Hani, Mandela falou à nação. Não era ainda Presidente, mas o discurso foi recebido como um discurso presidencial: “Esta noite, quero chegar a todos e a cada sul-africano, negro ou branco, do mais profundo que há em mim. Agora é tempo de todos os sul-africanos se unirem contra aqueles que, de qualquer quadrante, querem destruir aquilo por que Chris Hani deu a vida – a liberdade para todos.”
 
 

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