O crime televisivo da eurodeputada

Ministro e eurodeputada vão discutir em tribunal?

Somos um país de tristes. Facto de que todos temos conhecimento mas de que nos tendemos a esquecer até que a realidade nos entra pelo quotidiano.

Desta vez, foi o ministro da Defesa que nos veio lembrar esta triste sina  ao anunciar com pompa e circunstância que, segundo uma fonte do seu gabinete, "já se iniciaram os procedimentos inerentes à apresentação da queixa-crime, pelo ministério, contra os autores de declarações difamatórias produzidas nos últimos dias, nomeadamente pela eurodeputada Ana Gomes".

O que será que leva o ministro da Defesa do Governo da República Portuguesa que, acrescente-se, já foi ministro da Justiça, que tem como profissão  a advocacia e que é uma pessoa culta e bem (in)formada a anunciar que vai processar criminalmente uma eurodeputada, ex-diplomata e, acrescente-se, figura muito conhecida pela moderação das suas declarações  públicas.

Parece que não há muitas dúvidas: foram as declarações da deputada socialista num programa de debate televisivo a propósito da situação que se vive nos Estaleiros Navais de Viana de Castelo (ENVC), tema, sem dúvida, estapafúrdio e que não merece a atenção de ninguém, quanto mais de uma deputada. Nesse aspecto temos de reconhecer que a escolha do tema já de si revela alguma má-intenção.

A eurodeputada, depois de mostrar a sua indignação com o facto de os contratos de construção naval da defesa não serem entregues aos ENVC e de o ministro não ter respondido à Comissão Europeia sobre as ajudas que foram prestadas pelo Estado aos estaleiros, acrescentou: “Mais. Agora, ataca os direitos dos trabalhadores. Isto é criminoso. Não há outra palavra. É criminoso. Este ministro da Defesa é um inepto, se não for de facto mal intencionado. É preciso ir verificar que negócios é que tem o escritório dele de advogados com a empresa MARTIFER (a empresa que ganhou o concurso público da subconcessão da exploração dos ENVC) que tem de facto tentáculos em todos os partidos políticos”.

Quanto às afirmações de que a actuação do ministro é “criminosa”, no que se refere aos contratos de construção naval ou à falta de resposta à Comissão Europeia ou, ainda, aos ataques aos direitos dos trabalhadores, estou em crer que ninguém duvidará que Ana Gomes está no exercício mais do que legítimo do seu direito de opinião e de indignação, diria mesmo, de respiração. É certo que o ministro certamente preferia que a senhora deputada dissesse, cordata e civilizadamente, que não concordava com a actuação do senhor ministro e que lhe parecia algo incorrecta ou mesmo transgressora de princípios que entendia que este devia respeitar. Mas a senhora eurodeputada preferiu dizer que tudo o que ele fez “é criminoso”. Não foi branda mas percebe-se bem o que quer dizer e, espero, que não esteja o senhor ministro a querer que a Justiça portuguesa condene como criminosa quem assim exprimiu a sua discordância política com a actuação de um ministro em questões de evidente interesse público.

Neste triste país, não era impossível mas vamos deixar de lado esta hipótese mais perversa e admitir que os “procedimentos inerentes à apresentação da queixa-crime” que já se iniciaram e estão, seguramente, em franco desenvolvimento nos gabinetes e corredores do Ministério da Defesa se reportam à segunda parte das afirmações: a eventual intencionalidade da sua actuação e a necessidade de se ir “verificar que negócios é que tem o escritório dele de advogados com a empresa MARTIFER”, empresa que segundo Ana Gomes tem “tentáculos em todos os partidos políticos”.

Ora, sobre esta afirmação da eurodeputada tinha o ministro duas atitudes possíveis: a primeira era ignorá-las, considerá-las irrelevantes e como fazendo parte do barulho mediático sem interesse ou sem sentido a que diariamente somos sujeitos, arquivando-as debaixo da etiqueta “vozes de burro não chegam ao céu” ou “os cães ladram e a caravana passa”; a segunda seria considerá-las relevantes.

Não optou o ministro pela primeira atitude, pelo que, optando por considerar-se posto em causa pelas expressões da deputada, só teria que  esclarecer se o “seu”(?) escritório tem ou não “negócios” com a Martifer. Responder de forma assertiva à questão levantada pela senhora eurodeputada no âmbito, não temos dúvidas,  da sua participação cívica.  O ministro  tem um escritório de advogados? Não tem? Teve? Deixou de ter? A empresa Martifer era ou é cliente desse escritório de advogados? Em que âmbito? É certo que na sua qualidade de advogado, Aguiar-Branco não deve dizer publicamente quem são os seus clientes mas, com o acordo da Martifer e a bem da transparência pública e da seriedade que invoca, certamente que seria possível produzir explicações esclarecedoras. O que não faz qualquer sentido é enviar o assunto para os tribunais, judicializando, uma vez mais, a política.

A verdade é que, mais do que um país de tristes, somos um país sem futuro.

Advogado ftmota@netcabo.pt
 
 

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