Alcino Soutinho (1930-2013) Uma arquitectura que se agarrava à terra

Com a morte de Alcino Soutinho desaparece uma figura fundamental da arquitectura portuguesa. Dele fica uma obra vasta, que gera debate, mas precisa ainda de ser divulgada. Uns dizem que era um "arquitecto clássico", outros que tinha uma "linguagem efusiva". Para todos era simplesmente "encantador".

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Arquitecto, pintor, professor, viajante e, acima de tudo, um homem íntegro, bem-humorado, encantador... Este é o denominador comum dos depoimentos que durante esta segunda-feira foram sendo ouvidos sobre Alcino Soutinho, o arquitecto que morrera na véspera na sua casa do Porto, aos 83 anos, com um cancro.

O funeral realiza-se terça-feira de manhã, às 10h30, na Igreja de Cristo-Rei, sendo o corpo depois cremado no Tanatório de Matosinhos.

“Alcino Soutinho é uma figura fundamental da Escola do Porto.” A afirmação de Eduardo Souto de Moura, que foi seu aluno, sintetiza também algo que parece indiscutível na vida e obra do autor da Câmara de Matosinhos, mesmo que ele tenha trilhado um percurso diverso dos de Fernando Távora ou de Álvaro Siza.

“A arquitectura dele agarrava-se à terra. Ele não tinha muito interesse em grandes habilidades estruturais, edifícios no ar, que não estão apoiados", explicava também ontem ao PÚBLICO o arquitecto Manuel Graça Dias. "Soutinho gostava que se percebesse que os edifícios estavam apoiados, que tinham pilares, âncoras grossas no terreno.”

Num conjunto de perto de duas centenas de projectos concretizado em meio século de carreira, os Paços do Concelho de Matosinhos (1980-87), com a biblioteca e a galeria de arte contíguas – e onde falta ainda um auditório para completar o quarteirão –, tornaram-se a sua obra mais conhecida e citada.

Houve quem visse nela uma deriva pós-modernista uma “dissonância” relativamente à unidade da Escola do Porto – que Alcino Soutinho, de resto, considerava que “tinha já acabado”, depois de cumprido o seu papel histórico.

Nuno Brandão Costa, outro dos seus ex-alunos, contesta esta associação com o “revisionismo pós-modernista” e vê em Soutinho sobretudo “um arquitecto clássico, com uma identidade muito própria”.

Souto de Moura não vê nenhum mal nessa associação ao pós-modernismo. “Os mármores da Câmara de Matosinhos manifestam um certo prazer da decoração. E ele repôs a decoração, com alguma exacerbação de elementos às vezes quase barroca. Tinha uma linguagem efusiva, mas sempre muito bem feita”, diz o arquitecto, que revela ter-se inspirado no Museu Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, para o seu primeiro projecto, o Mercado de Carandá, em Braga.

“Soutinho foi um grande professor. Ajudou-me muito numa época difícil na Escola, no meu 4.º ano, quando ela quase estava para fechar. Pedagogicamente, deu importância à disciplina da Arquitectura. E não precisava de se afirmar politicamente: era um antifascista que tinha estado preso [antes do 25 de Abril de 1974]”, recorda o autor do Estádio do Braga.

A vertente pedagógica de Alcino Soutinho, que foi professor da Escola de Belas-Artes e depois da Faculdade de Arquitectura do Porto, entre 1972-99, foi também destacada por João Belo Rodeia. “Envolveu-se também na área de ensino, na investigação; andou pelo estrangeiro... Foi uma pessoa multifacetada, e que legou um trabalho muito importante do ponto de vista global para a arquitectura e os arquitectos portugueses”, diz o presidente da Ordem dos Arquitectos, que em Julho passado lhe prestou uma homenagem pública no Dia Nacional do Arquitecto. 


O viajante

A viagem foi, de facto, uma componente fundamental na vida de Alcino Soutinho, principalmente desde que em 1961 viveu em Itália, usufruindo de uma bolsa da Gulbenkian para estudar museologia – como projecto de fim de curso, imaginou um Museu de Artes e Tradições Populares para o Porto, que não viria a sair do papel.

Talvez se radique aqui o seu vínculo "com o racionalismo italiano”, que Nuno Brandão Costa vê plasmado nas suas obras, nomeadamente nos edifícios do BPI e da Bolsa de Derivados na Avenida da Boavista, no Porto, mas também nas obras feitas em Matosinhos, marcadas por um grande “carácter tectónico, ligado a uma materialidade muito expressiva”. “Ele vai ao léxico da tradição clássica para construir arquitectura contemporânea e progressista”, acrescenta o prémio Secil 2009.

As viagens foram ainda um meio de fortificar as relações profissionais e humanas de Soutinho com figuras como Souto de Moura, mas principalmente Álvaro Siza, três anos mais novo, que conheceu nos tempos em que ambos eram estudantes nas Belas-Artes do Porto. Numa visita guiada que fez para o suplemento Fugas (edição de 21 de Julho de 2012) aos seus lugares de eleição no Porto, Alcino Soutinho recordou o início da sua relação com Siza: “É curioso que ele queria ir para Escultura e eu para Pintura, mas cada uma das nossas famílias achou que isso era uma aventura perigosa e sem futuro em termos profissionais. Fomos para Arquitectura, o que, para nós, foi uma espécie de ‘recurso’.”

Mas nem um nem outro abandonariam a vocação da pintura. Soutinho considerava-se mesmo “um pintor clandestino”, e, em 2009, decidiu revelar essa sua faceta com uma primeira exposição de desenhos, a que chamou A Vossa Casa, na Cooperativa Árvore, de que foi um dos fundadores.

Se todos os inquiridos pelo PÚBLICO destacam “o homem encantador, dedicado e com imenso sentido de humor”, Alcino Soutinho deixa principalmente uma obra vastíssima, espalhada pelo país. Desses projectos, ganharam especial visibilidade, entre muitas unidades e complexos residenciais, a adaptação a pousada do castelo de Vila Nova de Cerveira (Prémio Europa Nostra, em 1982), os museus de Aveiro, Amadeo de Souza-Cardoso e do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, a marginal de Vila do Conde, um eco resort em Tróia, os departamentos de Química e de Cerâmica da Universidade de Aveiro e o Centro de Estágio do FC Porto, em Gaia.

Um conjunto cuja estudo e divulgação pública – a que o PÚBLICO se associou abrindo com Alcino Soutinho a 2.ª série da colecção Arquitectos Portugueses – carecem ainda de maior atenção. “Tenho a sensação de que ele se marginalizou, assumiu ser um outsider, com uma maneira de ser e uma linguagem muito própria. Nunca se preocupou muito em ser publicado. Mas creio que, na última fase da vida, manifestava alguma tristeza por achar que não tinha sido reconhecido como devia", diz Souto de Moura. "O tempo se encarregará de corrigir isso”, acredita.

com Cláudia Carvalho
 
 
 

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