Entre dois mundos

Há vinte anos, feitos ontem, deu-se um momento de formação coletiva para algumas centenas de pessoas em frente à Assembleia da República. Eis a memória que tenho dele.

Estávamos numa das manifestações contra o aumento das propinas no ensino superior público. Não éramos muitos, mas estávamos dispostos a ficar. Depois de um primeiro momento de tensão com a polícia, um cordão de agentes impedia o acesso à escadaria do parlamento. Passámos horas no largo fronteiro a São Bento, às vezes gritando palavras de ordem, outras vez tentando fazer rir os polícias, a ver se a máscara da autoridade se lhes desfazia. E, ao fim da tarde, num momento de calma e sem provocação, a polícia carregou contra nós a uma só vez, provavelmente com ordens superiores para limpar a praça.

Corremos para onde foi possível; perdi-me do meu grupo de amigos e fui parar, não sei bem como, ao jardim do Quelhas. No chão estava deitada uma rapariga, contraída, sem conseguir respirar. Uma amiga dela tentava ajudá-la, outra gritava perguntando porque as tinham agredido à bastonada. Não creio que algum polícia as ouvisse. Elas estavam apenas incrédulas, como estávamos todos. O momento da carga policial desiludiu-nos enquanto geração. Por que razão éramos tratados assim?

O “cavaquismo” estava a entrar numa fase de muitos nervos. O ministro da Administração Interna, que se não me engano era já Dias Loureiro, endureceu de um momento para o outro a repressão a qualquer protesto contra o governo, não só os nossos. Os trabalhadores da TAP foram apanhados num dia, os grevistas da Marinha Grande no outro. O ápice da repressão policial viria a dar-se no início do verão seguinte, na Ponte 25 de Abril, onde um tiro da polícia deixou um jovem tetraplégico. Disse-se então que aquele foi o fim de Cavaco como primeiro-ministro.

Enquanto subimos até ao Instituto Superior de Economia e Gestão, ali perto, para uma assembleia estudantil improvisada, e descemos depois para uma vigília durante a noite, não creio que soubéssemos que tínhamos visto o primeiro momento desse processo.

Nos dias seguintes, ainda sob o choque, as manifestações cresceram muito e tivemos um breve momento de solidariedade e compreensão geral entre as gerações mais velhas, uma pequena brecha no preconceito de que aquela era uma luta egoísta, feita por estudantes que se divertiam e não trabalhavam, até saíam à noite e portanto teriam dinheiro para pagar as propinas altas. Mas foi esse preconceito que, no fim de contas, venceu.

As propinas aumentaram e os bancos — a começar pelo do estado — apostaram no endividamento de jovens. Hoje temos, nos níveis superiores do ensino, uma educação para ricos e pobres: quais são as famílias que podem pagar dez mil euros anuais por um mestrado? Supostamente o estado não podia apoiar tanto o ensino superior. Acabou apoiando o banco em que Dias Loureiro se meteu depois de ser ministro.

Quanto à geração que há vinte anos viveu aquele momento, não sei se é hoje mais compreendida, até por si mesma. É altamente formada mas ainda precária, desempregada, emigrada. Assistiu ao início do desfazer de uma ideia do bem público. Foi apanhada entre dois mundos.

Historiador e eurodeputado

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