A renovação do museu foi à procura do século XIX e encontrou um céu estrelado

Repor a decoração original de paredes e tectos foi um dos eixos fundamentais da renovação do museu nacional da Holanda. A pintura mural do passado encontra-se agora com a obra do britânico Richard Wright, que trocou folhas e flores por estrelas pretas

A biblioteca funcionou como projecto-piloto para os conservadores- restauradores e está agora aberta ao público pela primeira vez
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A biblioteca funcionou como projecto-piloto para os conservadores- restauradores e está agora aberta ao público pela primeira vez Iwan Baan/Cortesia do Rijksmuseum
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A Galeria de Honra hoje, com as pinturas murais restauradas Iwan Baan/Cortesia do Rijksmuseum
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A Galeria de Honra antes das obras Cortesia do Rijksmuseum
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"A Ronda da Noite", de Rembrandt, regressou ao seu lugar original Iwan Baan/Cortesia do Rijksmuseum
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A galeria da obra-prima de Rembrandt já foi assim Cortesia do Rijksmuseum
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No antigo hall de entrada as pinturas murais e o chão em mosaico estão hoje à vista de todos Jannes Linders/Cortesia do Rijksmuseum
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No passado, a entrada fazia-se por aqui, com o estuque e o soalho a esconderem a decoração original Cortesia do Rijksmuseum
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Richard Wright passou horas e horas a pintar estrelas, deitado de costas num andaime Cortesia do Rijksmuseum
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A obra final de Wright Cortesia do Rijksmuseum

Sobre um dos bancos acinzentados de Jean-Michel Wilmotte, o arquitecto a quem se deve todo o design de interiores (exposição e mobiliário) do renovado Rijksmuseum, Amesterdão, há uma série de fotografias, moldes de padrões geométricos e flores, escalas de cor e folhas de esboços carregadas de anotações.

Estão ali para que René Hoppenbrouwers possa explicar aos jornalistas e críticos que percorrem a Galeria de Honra a poucos dias da reabertura do museu nacional da Holanda (cerimónia foi no sábado, com a rainha Beatriz a assistir a um supreendente jogo de fumos coloridos) o que foi preciso para devolver ao edifício do séculos XIX boa parte das decorações originais.

“Tivemos dezenas de pessoas a trabalhar em campanhas sucessivas. A única dificuldade séria de todo o projecto foi ter muita coisa para fazer e muito pouco tempo”, explica ao PÚBLICO Hoppenbrouwers, que dirigiu a equipa de conservadores-restauradores que durante oito anos procurou devolver ao edifício desenhado por Pierre Cupypers (1827-1921) boa parte do seu programa decorativo, concentrando esforços em três espaços diferenciadores: o antigo hall de entrada, a Galeria de Honra e a biblioteca, que está agora pela primeira vez aberta ao público, quase 130 depois de o arquitecto holandês a ter dado por terminada.

A biblioteca foi, aliás, o território de ensaio da equipa de restauro, que chegou a contar com 80 técnicos, 70 dos quais estudantes e estagiários, explica Hoppenbrouwers. Com 43 mil volumes, na sua maioria dedicados à história da arte e da Holanda, distribuídos por três andares e acessíveis através de uma estreita escada em caracol, funcionou como “projecto-piloto”. Mas, de que forma?

Quando os autores do projecto de remodelação – os arquitectos espanhóis Antonio Cruz/Antonio Ortiz e o francês Wilmotte – e a direcção do museu decidiram que a renovação passaria por aproximar a estrutura do edifício o mais possível da de Cuypers, eliminando galerias e outras alterações que começaram a ser introduzidas logo na década de 1920, foram obrigados a reflectir sobre a reconstituição, ou não, do programa decorativo que o holandês elaborara com Victor de Stuers (responsável pelos jardins), apoiando-se no trabalho do pintor Georg Sturm.

Depois de uma longa discussão dentro do próprio museu – muitos foram os que se opuseram, lembrou o director de colecções Taco Dibbits na apresentação à imprensa – ficou acordado que a renovação, quer nas fachadas, quer no interior, teria de integrar as pinturas murais de inspiração renascentista e neo-gótica do século XIX, que muito devem ao Arts and Crafts e a William Morris, o artista e escritor britânico que é um dos principais nomes deste movimento de design que se desenvolveu sobretudo entre 1860 e 1910.

“Tínhamos de as manter porque elas são estruturais a toda a concepção de Cuypers”, explicaria mais tarde Dibbits, acrescentando que, quem entrasse no museu antes das obras desconhecendo os pormenores da sua construção, jamais adivinharia que, por trás do estuque branco das paredes do hall se escondia tanta cor, em flores, ramagens e figuras históricas. Jamais adivinharia que o soalho cobria um chão em mosaico.

“Assim que soubemos que seria para avançar [2003], aprofundámos a pesquisa sobre os desenhos originais das paredes, dos mosaicos e até dos altos-relevos das colunatas de ferro que sustentam os andares da biblioteca”, diz Hoppenbrouwers. Para essa pesquisa foi essencial o arquivo pessoal de Cuypers, muito completo, onde os conservadores encontraram desenhos, cartões, moldes e fotografias. “Em muitos sítios, talvez mesmo a maioria, o que fizemos foi uma verdadeira reconstrução porque o estuque tinha estragado a pintura de tal maneira que já não era possível aproveitar nada.”

O hall é o único espaço do museu em que as pinturas murais e o chão originais foram reconstituídos integralmente (o restauro do mosaico, que tal como os vitrais não é da autoria de Sturm, ficou terminado em 2011). O artista, um dos colaboradores mais frequentes de Cuypers, desenhou para a antiga entrada do museu 36 cenas – representações simbólicas das Virtudes e dos vários ramos das artes, mas também de episódios carregados de heróis da História da Holanda. São ainda de Sturm os 30 medalhões com retratos de pintores, poetas e compositores.

“Mas a decoração não se resume às grandes composições”, adverte o conservador. São também os padrões detalhados que cobrem os tectos em abóbada e as colunas, tanto no hall como na biblioteca e na Galeria de Honra, onde muitos temeram que viessem a competir com as pinturas do século XVII. São formados por milhares e milhares de flores e folhas, muitas formando complexos rendilhados.

É esta decoração, que como toda a arquitectura de Cuypers é “extremamente exigente”, reconhece o espanhol Antonio Ortiz, que serve de ponto de partida à obra que o britânico Richard Wright criou para as duas salas contíguas à que guarda A Ronda da Noite, para muitos a mais importante obra de Rembrandt van Rijn, um dos grandes mestres da pintura europeia.

Estrelas para Cuypers

Foi a pensar em Cuypers e no programa decorativo que faz parte do seu grande e polémico museu que Wright e a sua equipa – foram quatro os seus colaboradores – carregaram de estrelas os tectos das pequenas salas, onde nada está exposto, respondendo a uma encomenda que o Rijksmuseum fez em 2004. O objectivo é que, aí chegado, o visitante se detenha apenas nesta obra contemporânea que o artista levou anos a desenvolver, o que não lhe é nada habitual.

Richard Wright (n. 1960), que recebeu em 2009 o Prémio Turner (um dos mais importantes das artes plásticas e atribuído em exclusivo a artistas britânicos com menos de 50 anos) com uma obra feita para outro museu - uma pintura mural em folha de ouro criada para a Tate Britain, em Londres -, estudou aprofundadamente o esquema decorativo original e passou muito tempo à conversa com arquitectos e restauradores.

O resultado é uma pintura em grande escala com um padrão geométrico composto por milhares de estrelas pretas executadas à mão. Um padrão que cria um efeito óptico incrível – a ilusão de que estamos sob um tecto abobadado, como na maioria dos espaços nobres do Rijksmuseum.

Sempre “fascinado por técnicas e métodos tradicionais de pintura”, escreve Laura Roscam Abbing no n.º 61 do buletim do museu, lançado agora para coincidir com a reabertura, não é de estranhar que Wright tenha recorrido a um sistema antigo para transferir para os tectos o desenho – uma espécie de decalque, feito a partir de um cartão perfurado e polvilhado com carvão em pó, que Cuypers também usou. Assim que as estrelas foram transferidas, os artistas subiram para os andaimes e, deitados de costas, pintaram-nas uma a uma. As imperfeições que apresentam, diz o britânico, são naturais. Ninguém as corrigiu para que o público possa notar, sem esforço, que aquele foi um trabalho manual.

É na execução, e não nos motivos escolhidos, que Wright mais homenageia a decoração do século XIX – este processo com falhas, humanizado, é típico do Arts and Crafts, resposta britânica à excessiva industrialização que inspirou Cuypers, mas rejeita as folhas, flores e ramagens que marcam os padrões desenhados por Morris. Embora elogie o esquema decorativo original – diz que a ele se deve grande parte da ambiência do museu, muito espiritual, quase como numa igreja – Wright preferiu afastar-se dos verdes e dos tons de tijolo típicos do século XIX.

“[A pintura] responde à forma como Pierre Cuypers colocou ênfase na ornamentação na concepção do edifício”, escreveu o artista britânico na proposta que enviou à direcção do museu, que iria avaliá-la antes que pudesse ser posta em prática. “Quero que pertença tanto ao passado como ao futuro […].”

Explica Laura Roscam Abbing que é bastante comum a este inglês educado na Escócia inspirar-se nos espaços que vão receber as suas obras, como aconteceu aqui. “Esta evocação da memória não é surpreendente”, continua, já que “relacionar uma obra com o tempo é um elemento importante da pintura de Wright”.

Para quem passeia pelas duas salas cheias de luz e de estrelas, o que é à partida contraditório, a ligação às decorações originais pode não ser imediata, mas o jogo que os tectos propõem é. Obrigam o visitante a inclinar a cabeça para cima, quando o mais provável é ter passado pela Galeria de Honra sem o fazer, apesar das pinturas murais do século XIX cobrirem arcos e frisos. Wright criou um céu em negativo – as estrelas são pretas, o fundo em que foram pintadas é branco e parece brilhar -, uma versão contemporânea da floresta original de Cuypers.

 

 
 
 
 
 

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