Lincoln: ainda pode ser mito para a era Obama?

Spielberg disse que cada geração precisava de um filme sobre Lincoln. O seu chegou na segunda era Obama. Ainda é possível refundar o mito?

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"Lincoln" é interpretado por Daniel Day-Lewis DR

O nome e a figura de Abraham Lincoln carregam peso histórico e mitologia. Por isso, Lincoln, de Steven Spielberg, surge neste momento nas salas de cinema americanas acompanhado de todo um diálogo de apropriação da figura para fins idealistas - tanto por republicanos como por democratas.

 O filme chegou às salas três dias depois das eleições em que Barack Obama foi reeleito e quatro anos depois de se ter comparado Obama a Abe Lincoln. Vem-nos mostrar o lado humano, para além do lado heróico, do 16.º presidente dos EUA - serviu entre 1861 e 1865, ano do seu assassinato. Retrata o início desse último ano do Presidente e o seu esforço para abolir a escravatura com a passagem da 13.ª Emenda à Constituição americana.

Spielberg programou a estreia para depois das eleições. Para não criar um diálogo político em torno do filme? A verdade é que Lincoln está a ser recebido como reflexão sobre a sociedade americana e sobre Obama. Douglas L. Wilson, historiador especializado do Lincoln Studies Center do Knox College, Illinois, foi um dos estudiosos consultados por Spielberg. "Uma das coisas que Spielberg disse", conta ao PÚBLICO, "foi que cada geração precisava de um filme sério sobre Lincoln. Certamente, tinha ideias sobre como poderia usar a figura para falar do contexto em que estamos, e mesmo adiando a estreia existe uma tomada de posição."

Jonathan Rosenbaum, crítico de cinema, relembra: "Antes das eleições presidenciais de 2008 faziam-se comparações entre Lincoln e Obama. Hoje, passados quatro anos, as diferenças são mais nítidas, mas ao mesmo tempo existe uma certa mitificação de Obama pelo facto de ser negro. Acho que pode existir [no filme] uma reflexão sobre Obama - chamar Lincoln a Obama é mitológico, mas ser negro também é outro tipo de mitologia, que foi explorada durante a sua primeira campanha."

Obama é o primeiro presidente afro-americano e a sociedade americana e a comunidade internacional esperam que faça a diferença no seu tempo - tal como Lincoln, que era um republicano, fez no seu. Em Lincoln o Presidente tenta fazer passar a 13.ª Emenda, que aboliria a escravatura, e como não tem votos suficientes usa métodos persuasivos para chegar onde quer - o argumento explora até onde estaria disposto a ir com as suas habilidades e com a sua astúcia. A mensagem é: "Transforme os seus inimigos em amigos". Actualmente, Obama lidera um país cujo Senado é controlado pelo Partido Democrata, mas a Câmara dos Representantes está sob maioria republicana, tornando mais complexas a mudança e a implementação de um plano de saúde como o Obama Care, por exemplo.

Para Wilson, o filme de Spielberg é pertinente: "Lincoln está a confrontar-se com o que quer fazer politicamente e o que precisa de fazer para conseguir os votos da oposição, e isso é uma situação familiar se compararmos com a do actual Presidente. Questiono-me de facto se a escolha de Spielberg para contar a história de Lincoln neste momento específico não estará relacionada com a situação actual americana."

A impossibilidade do mito
Lincoln surge numa América pós-crise económica. John Ford mostrou o seu Young Mr. Lincoln, em 1939, num contexto pós-Grande Depressão e pré-Segunda Guerra Mundial. Em 2006, em análise ao documentário Directed by John Ford de Peter Bogdanovich, Spielberg falava sobre a importância de John Ford: "É a essência do cinema clássico americano e qualquer pessoa séria a fazer filmes hoje, tendo conhecimento ou não, é influenciada por Ford." É uma admiração de há muito: Spielberg conheceu Ford quando tinha 15 anos e o realizador concedeu-lhe um minuto do seu tempo, ensinando-o a melhor enquadrar o horizonte.

Young Mr.Lincoln mostrava o início da carreira de Lincoln como advogado em Springfield. O filme de Spielberg mostra a luta do Presidente para fazer passar a 13.ª Emenda. O filme de Ford passava-se em 1837: aí encontramos um homem, interpretado por Henry Fonda, que procura uma família depois de ter perdido a mãe. Spielberg mostra-nos Lincoln, interpretado por Daniel Day-Lewis (elogiadíssimo pela crítica, aliás), em 1865, enquanto marido e pai.

Para Jonathan Rosenbaum, "o filme de Ford explora a virtude e a honestidade de Lincoln e revela a importância dessas características e a necessidade de as ter. Já Spielberg argumenta a necessidade de ter no poder alguém tão astuto como Lincoln. O problema é que Steven Spielberg tenta manter algumas ideias de Young Mr. Lincoln combinando-as com a sua percepção, e para mim essa combinação não funciona, é algo em que não consigo acreditar."

Aos olhos de Rosenbaum, o filme falha. Mas "o facto de falhar pode apontar para uma incapacidade por parte do público de compreender e sustentar Abraham Lincoln como um mito, tal como John Ford e a audiência conseguiam em 1939. Nessa altura, o cinema era o principal media nos EUA e conseguia-se chegar a um público mais vasto e que partilhava os mesmos ideais. Hoje a audiência é mais segmentada. Estamos num lugar diferente, os americanos estão mais longe das suas raízes históricas do que os espectadores de 1939".

Douglas L. Wilson confirma esta ideia: "Não existe uma opinião unificada sobre Lincoln, o que se aplica hoje à maioria das figuras históricas. Os livros eram muito positivos no passado e existia uma ideologia à volta de Lincoln que acabou por se alterar na segunda metade do século XX. E agora vivemos um momento diferente."

Os estudos sobre o presidente que apareceram nos últimos 20 anos não contribuem para a imagem unificada do herói.

"Existe hoje uma melhor compreensão de toda a questão da luta de Lincoln para a libertação dos escravos", explica Wilson, "mas não existe uma imagem única como na primeira metade do século XX." É uma figura complexa e com uma vasta audiência nos EUA, o que permite aos historiadores continuarem a escrever sobre ela. Mas o que tem surgido tem contribuído para novas perspectivas. "Estão a surgir novas questões e eventualmente novos resultados."

O historiador refere novas abordagens que contribuem para "um melhor retrato de Lincoln enquanto homem e uma imagem mais clara das suas origens. Os estudos demográficos analisam pessoas com o mesmo background de Lincoln, percebendo qual o seu percurso, e mostram-no como mais do que um rapaz pobre que se educou a si próprio. Com a análise do contexto histórico e sociodemográfico, percebe-se melhor a sua origem."

E a verdade é que Lincoln se tornou uma figura de importância nos EUA não só pela sua relevância política, mas por este percurso de self-made man.

"As pessoas só começaram a perceber a sua importância quando leram as suas notas, quando perceberam quão eficaz era. Isto são percepções não imediatas, mas que ajudaram os americanos a criar uma identidade. Lincoln acorda o nosso sentido de cultura e ajuda-nos a definir o que somos ou o que pensamos que somos. E isto aplica-se não só à sua carreira, também à sua vida. A ideia de uma pessoa educar-se a si mesma, sem ir à escola, e chegar a um lugar promissor, toca os americanos."

É esse lado que John Ford mostrava no seu filme de 1939: o rapaz que se constrói a si próprio e cuja visão de futuro promissor é representada pelo olhar constante para a linha do horizonte - o filme termina com a subida a uma montanha.

Steven Spielberg explora antes, em consonância com o contexto de uma América que procura humanizar a figura, a vida pessoal do Presidente. Para Rosenbaum existe a "tentativa de fazer uma ligação entre algo profundo e espiritual com aspectos mais mundanos e do dia-a-dia".

As discussões familiares com a mulher e as relações com os filhos - a proximidade com o filho mais novo, a ausência de relação com o filho mais velho - fazem parte desta narrativa que não disfarça as dificuldades e ansiedades do homem. E é o homem, precisamente, que fascina Douglas L. Wilson.

"Era uma figura pública, e como tal tinha uma persona pública, mas quando penso em Abraham Lincoln penso no homem privado: as pessoas santificam-no, tratam-no como um deus. Era um homem bom, único, amigável e gentil, mas não era perfeito, era humano. Era sociável, era fácil de conversar com ele, partilhando, às vezes, o que pensava. Mas ao mesmo tempo não queria que se conhecessem todos os seus pensamentos e sentimentos. Considero que Lincoln era um homem de substância, muito mais intelectual do que se pensa. Habitava na sua própria mente, e era céptico: tinha de experimentar para acreditar. Admiro-o muito, mas ao mesmo tempo que vejo o seu talento político, vejo o homem, vejo a manipulação, o facto de estar disposto a usar as pessoas para conseguir fazer passar a abolição da escravatura no Congresso. Era um modelo, mas um homem do seu tempo: se o trouxermos para o dia de hoje, estaria a dizer coisas que não são politicamente correctas, mas que não eram ofensivas na altura, por isso não se pode julgá-lo no século XX ou XXI."

Texto originalmente publicado na edição impressa a 14 de Novembro de 2012

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