Xi Jinping na encruzilhada

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O que mais impressionou os jornalistas chineses no fim do XVIII Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) não foi a composição da comissão permanente do Bureau Político mas o tom do curto discurso do novo secretário-geral, Xi Jinping. “Parece confiante, tranquilo e a lógica do seu discurso é clara”, resumiu um jornalista liberal de Hong-Kong. Não usou slogans nem o habitual jargão dos dirigentes. “O mais impressionante é que não mencionou o pensamento de Mao Zedong, o marxismo e o leninismo”, disse um outro jornalista.

 

O texto da sua intervenção na “conferência de imprensa” – em que os jornalistas não puderam fazer perguntas – foi seguramente acordado, como é norma, com a comissão permanente e com o seu antecessor, Hu Jintao. Mas Xi introduziu alguns improvisos, o que atrapalhou a tradutora. Há duas passagens que não constam na versão oficial publicada. E, quando apresentou os outros membros da comissão permanente, apresentou-os como “colegas”, não como “camaradas”. Os observadores voltaram a tomar nota.

A composição da nova comissão permanente não entusiasmou os analistas que apostavam em reformas rápidas pois há uma maioria “conservadora” que estará sobretudo preocupada com a defesa do statu quo. No entanto, a bem informada jornalista Hu Shulin escreveu em editorial no Caixin Online, de Pequim, que o tom de Xi dava “mais substância” à expectativa de futuras reformas. O tempo o dirá. Os chineses gostam de ler sinais.

Luan

“A China está numa encruzilhada política e não se pode dar ao luxo de voltar atrás”, escreveu a mesma Hu Shulin. É o próprio sucesso económico que hoje coloca a China perante um dilema: “Reformar ou morrer.” O país está numa situação em que fazer reformas implicará sempre conflito e desestabilização, mas em que a recusa de as fazer ameaça também desestabilizar o regime e pôr em causa o seu principal pilar de legitimidade — o crescimento.

O modelo de “fábrica do mundo” está esgotado. A China ficará no marasmo se não conseguir subir de patamar e passar a crescer com base na inovação tecnológica. Por outro, terá de escolher entre continuar a favorecer as exportações — e a China costeira — ou apostar no consumo interno e nas políticas sociais, o que interessa à China do interior. A “fractura social” tornou-se abissal: dois por cento da população controlam 32% dos rendimentos. O “milagre chinês” deu lugar à corrupção e a uma oligarquia que se confunde com o partido-Estado e domina os monopólios do sector público. Nenhuma destas mudanças se fará sem conflito.

Por outro lado, os dirigentes chineses sempre se mostraram obcecados com o risco de caos ou desordem — luan. É um sentimento tradicional, fundado na História, enraizado na sua cultura e reactualizado pelas tragédias chinesas do século XX.

O temor da desordem toca os próprios reformistas. Wang Zhanyang, director do Departamento de Ciência Política no Instituto Central do Socialismo, em Pequim, coordenou em 2011 um estudo sobre “a via para o governo constitucional”. Explicou ao Le Monde que se trata de um programa de “liberalização controlada” do sistema eleitoral, começando pelos escalões mais baixos — o que já se pratica — até chegar aos escalões superiores em 10 ou 15 anos, mas deixando ao partido um “papel de pilotagem”. Justifica: “O grande medo na China é que as reformas sejam agressivas. As noções de democratização ou multipartidarismo angustiam muitas pessoas que têm medo de que tudo se desmorone.” O luan é o seguro de vida do partido.

Foi para evitar os riscos de caos e de desmoronamento da China que Deng Xiaoping lançou em 1979 as reformas em direcção ao capitalismo, observou o sinólogo Jean-Luc Domenach. Mas, para evitar que as reformas se traduzissem em caos, reforçou os mecanismos de controlo da população.

O sino-americano Minxin Pei pergunta: devemos estar obcecados com a ascensão da China ou devemos preocupar-nos com a sua queda? “É prematuro imaginar que o PCC tenha perdido a sua capacidade de adaptação e renovação. A China pode perfeitamente regressar em força nos próximos anos e os EUA não podem ignorar esta possibilidade. Mas a hipótese de uma derrocada do partido também não deve ser menosprezada. (...) Um tal abalo sísmico está longe de ser impossível.”

O sinólogo francês François Godement considera tudo em aberto. “Chegado a uma encruzilhada, o partido-Estado pode decidir não avançar e adiar a reforma. Fará então marcha atrás e depressa se verão as consequências negativas: expansão de uma ideologia nacionalista, ruptura irremediável com os elementos legalistas, encerramento numa economia estatal que fracassará no projecto de internacionalização.”

Os limites da reforma

O horizonte das reformas políticas na China é, por enquanto, uma “longa fase de democracia controlada”, à imagem de Honk Kong ou Singapura. Para lá da economia, as duas batalhas que se anunciam são a liberdade de imprensa e, sobretudo, a “reforma legal” — tornar o sistema judicial independente do partido, capaz de garantir as liberdades e de travar o arbítrio policial.

O apelo à “democracia eleitoral” vem de sectores liberais minoritários ou de nacionalistas preocupados com a grandeza da China e com o confronto com os Estados Unidos. Citei na semana passada o teórico de geopolítica Yan Xuetong que considera que será a “autoridade humana” – a concepção chinesa de soft power — a decidir qual das potências prevalecerá. A China deveria “adoptar o princípio moral da democracia” porque o actual sistema político é o maior obstáculo à eficácia da sua política externa. O analista Dominique Moïsi comparou a “ressonância emocional” das eleições americanas com a do congresso chinês. Conclui: “O soft power americano teve uma vitória por KO sobre o soft power chinês.”

O sinal de Xi

A corrupção e o “caso” Bo Xilai acentuaram a crise de credibilidade do partido. Ao longo de 91 anos, o PCC mostrou uma grande capacidade de paranóia mas também de adaptação. Xi foi escolhido porque soube federar as várias correntes.

O poder chinês cultiva o segredo, é uma “caixa negra”. Mas sabe-se pela experiência do pós-maoísmo que, mais do que aos imperativos ideológicos, o PCC obedece aos imperativos da realidade. O marxismo-leninismo já não é uma ideologia, é “um método de poder”, disse alguém.

 A obsessão da elite dirigente chinesa é “eliminar o imprevisto”. O papel da nova comissão permanente será zelar pela estabilidade. O PCC não abdicará do monopólio do poder. Mas a “quinta geração”, que agora ascende ao poder, é menos dogmática e mais realista do que as anteriores e por isso não pode ignorar que a China está de novo na encruzilhada. Terá sido o sinal que Xi quis enviar no seu discurso.

Este texto foi publicado, em versão mais curta, na edição de 18.11.12

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