Nas memórias dos atentados de Bali também há “idiotas” e histórias “cómicas”

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Familiares de vítimas visitam memorial Foto: Sonny Tumbelaka/AFP

Dez anos depois dos atentados de 2002 em Bali, Ana Gomes, na altura embaixadora de Portugal na Indonésia, consegue encontrar alguma graça em episódios que aconteceram no rescaldo do ataque, mas também recorda “a coisa mais dura que já fez na vida”.

Portugal e Indonésia tinham vivido de costas voltadas devido à questão de Timor-Leste. Quando as relações políticas foram retomadas, Ana Gomes rumou a Jakarta. E agora recorda pormenores dos dias que se seguiram aos atentados de 12 de Outubro de 2002 como se tivesse sido ontem.

A eurodeputada socialista fala ao PÚBLICO por telefone a partir de Bruxelas, mas o tom é de quem participa numa conversa de café. Ana Gomes relembra, até imitando modos de falar, uma história que, “vista à distância, até é cómica”, uma “coisa kaftiana”.

Logo que soube do ataque, partiu para Bali para tentar encontrar os portugueses que estariam na ilha, “pelo menos 165”, entre veraneantes e soldados.

Entre os inúmeros telefonemas que recebia de famílias desesperadas, anuiu em tentar convencer uma jovem a sair da ilha. Segundo a família, ela queria regressar, mas o namorado não estava de acordo.

No meio de tanto trabalho, e depois de muito procurar a altas horas da noite, lá chegou a um local muito longe e sem luz onde se encontrava um grupo de jovens com idades perto dos 20 anos.

“Assisto a discussões brutais entre eles. A miúda dizia que se queria ir embora e o rapaz respondia: “Epa, isso é uma estupidez. Agora vai começar a terceira guerra mundial e isto é o sítio mais calmo do mundo, porque a bomba já rebentou aqui, pá!”, relata, entre risos.

Por um lado, Ana Gomes sentia que estava ali para ajudar os jovens que queriam sair da ilha, numa altura em que era muito difícil fazê-lo, porque “todos os estrangeiros queriam ir embora” e havia filas monstruosas no aeroporto. Por outro lado, reflecte: “Aquilo que o rapaz dizia não deixava de ter alguma lógica. Ali já tinha ocorrido, já não era ali que ia acontecer alguma coisa.”

Enquanto embaixadora, também teve de lidar com pessoas “idiotas”, como um homem que exigia ser retirado, embora se encontrasse num “óptimo resort” e longe de Kuta, argumentando que era “primo” de um ministro.

Memórias que transformam o quotidiano

As recordações engraçadas não chegam para apagar as dolorosas. A embaixadora portuguesa na Indonésia de 2000 a 2003 diz que o “mais horrível” foi perceber que um dos militares estava desaparecido. Diogo Ribeirinho, um dos militares de serviço em Timor-Leste e que por aqueles dias se encontrava de férias na ilha indonésia, foi a única vítima portuguesa.

“Tive de percorrer todas as morgues improvisadas, que eram camiões com gelo onde eram depositados os restos das pessoas. Depois havia fotografias de restos de pessoas, para ver se alguém identificava qualquer coisa. (…) Tínhamos de andar de morgue em morgue a ver coisas horríveis, corpos cobertos com plásticos e a deteriorarem-se por muito gelo que pusessem”, lembra, frisando que essa foi “talvez a coisa mais dura” que fez em toda a vida.

A eurodeputada socialista frisa que as pessoas pareciam “zombies” e estavam em “estado de choque, porque Bali era o sítio de turismo por excelência”.

Este atentado, o mais mortífero na Indonésia, com 202 mortos, “foi um abrir de olhos para as autoridades indonésias” quanto à necessidade de enfrentar o terrorismo. Antes, já Ana Gomes tinha assistido a uma “série de atentados de menor amplitude em número de vítimas”, como por exemplo contra igrejas ou pontes.

É desse tempo, ainda antes dos atentados de Bali, que vem o reflexo de prestar atenção a “sacos que estejam no chão” em centros comerciais, pois as autoridades indonésias alertavam nesse sentido.

As cicatrizes dos voluntários

O polícia Haji Bambang Priyanto, que foi considerado um herói pela revista TIME Ásia, devido ao trabalho que fez durante 23 dias no local das explosões em Kuta, disse ao PÚBLICO, através de um tradutor, numa curta entrevista após uma conferência de imprensa no dia em que apresentou um livro de memórias, que não sente que tenha um trauma, mas que “ainda relembra tudo” e que isso o deixa “sempre triste”.

Para este polícia, que também se voluntariou para ajudar noutras catástrofes, é “impossível esquecer esta tragédia”, sobretudo algumas imagens como “corpos a arder”.

Os lucros do livro que agora lançou, intitulado “A sinceridade guia os meus passos”, destinam-se aos sobreviventes dos atentados de 2002 e à Cruz Vermelha Indonésia, em Bali.

Maureen Trowell, outra voluntária nos atentados de Bali, ainda mantém na memória a imagem de algumas pessoas que ajudou num hotel na noite do atentado.

“O hotel apenas tinha creme para queimados e nós metemos isso nas vítimas. Tentámos encontrar alguma forma de lhes tocar e fazer saber que não estavam sozinhas, porque elas estavam surdas por causa da bomba e não conseguiam ouvir o que nos dizíamos”, descreve.

A australiana, de 69 anos, vem todos os anos a Bali por esta altura. “É a minha forma de dizer que lamento o que aconteceu e que lamento também que isto tenha acontecido em Bali”, realça.

Maureen Trowell suspira quando questionada sobre o que mudou com os atentados de há dez anos: “Definitivamente mudou-me para melhor, porque agora eu não tomo as coisas por garantidas. Sei que a vida me pode ser tirada de forma muito rápida”.

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