Obsessão pela vitória tornou-se o principal inimigo de Ronaldo

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Cristiano Ronaldo está em branco no Euro 2012 Eddie Keogh/Reuters

Cristiano Ronaldo, a 13 de Junho de 2012, após ficar em branco na vitória de Portugal sobre a Dinamarca (3-2): "Com as oportunidades que tive, podia ter feito melhor, mas o mais importante foi a equipa ter ganho". E o mesmo Cristiano Ronaldo, a 13 de Junho de 2010, antes da estreia da selecção no Mundial da África do Sul: "Não estou nada preocupado. Os golos são como o ketchup: quando aparecem vêm todos de uma vez". As duas situações são ligeiramente diferentes. Duas oportunidades flagrantes desperdiçadas frente à Dinamarca reabriram o debate sobre o rendimento de Cristiano Ronaldo na selecção (leva dois jogos e zero golos no Euro 2012). Há dois anos, o extremo do Real Madrid atravessava um período de 16 meses sem marcar pela equipa nacional (terminaria o Mundial 2010 com um golo em quatro jogos).

O ponto comum nestas duas declarações de Cristiano Ronaldo é a falta de golos pela selecção. Um cenário conhecido dos adeptos, que se deslumbram a vê-lo com a camisola do Real Madrid. Mas, ao serviço da equipa nacional, o instinto concretizador de CR7 tem estado ausente. Algo evidente na temporada 2011-12: numa época de sonho pelos merengues fez 59 golos em 53 jogos, enquanto pela selecção marcou seis vezes em 11 encontros. A média de golos pela equipa nacional é metade da atingida ao serviço do Real Madrid (ver infografia).

"O trabalho na selecção é muito mais episódico do que no clube. Há menos estabilidade e é natural que haja mais variações do desempenho", indica Duarte Araújo, investigador do Laboratório de Psicologia do Desporto da Faculdade de Motricidade Humana. "Mas a prestação não diz respeito apenas a marcar golos. Há outros aspectos que têm de ser ponderados", ressalva o mesmo especialista, sublinhando que "não se pode confundir falta de golos com mau desempenho."

Opinião partilhada por Jorge Silvério, doutorado em Psicologia Desportiva, que identifica vários factores que explicam a fase menos positiva de Cristiano Ronaldo. Desde logo, o seu perfeccionismo: "Quer fazer as coisas muito bem o que, sendo positivo, acaba por pressioná-lo". "Ele é também extremamente competitivo. Não gosta de perder em nada, nem a jogar ténis de mesa com o Nani. Quer ser o melhor do mund e Messi é uma preocupação constante. E, neste caso, até temos a eleição para a Bola de Ouro da FIFA", prossegue Silvério, notando ainda "alguma falta de confiança" e "cansaço físico e mental".

Época já vai com 65 jogos

Esta não é uma questão menor. A época de Cristiano Ronaldo começou há dez meses, com o extremo português a jogar ininterruptamente. Contando com o jogo frente à Dinamarca, leva 5826 minutos nas pernas - quase 65 jogos completos.

No seio da selecção, o discurso é de confiança no CR7. "Ele tem sempre uma grande carga de responsabilidade, mas o Cristiano Ronaldo é apenas um de 11 que estão em campo. O que interessa é que a equipa ganhe. Sinto que ele tem vontade de resolver a situação e isso é importante", disse ontem o director desportivo da federação, Carlos Godinho, à emissora Antena 1.

Mas a vontade de Cristiano Ronaldo pode não bastar, daí Jorge Silvério considerar que faria sentido "haver trabalho ao nível psicológico" na selecção, nomeadamente com um profissional da área. Santiago Segurola, adjunto do director do diário desportivo espanhol Marca, descreveu a situação de Cristiano Ronaldo na selecção como "um ponto de insegurança juvenil", numa crónica no "Diário de Notícias".

Duarte Araújo acredita que Ronaldo tem capacidade para lidar com a situação. "Tem passado por muitas situações deste género e consegue fazer um bom balanço dos seus desempenhos, para os integrar nos jogos seguintes", aponta. "Há aspectos em que não sei se se deve mexer. Ele é muito competitivo, é algo que faz parte das suas características. Alterar isso seria disfuncional", acrescenta.

À margem da perspectiva da psicologia, a visão de um treinador de futebol é que é legítimo pedir mais a Cristiano Ronaldo. "Começámos a desculpabilizá-lo muito antes de ele errar, logo quando fomos para o Euro dizendo que não se lhe podia pedir tudo. Se não pedirmos ao Cristiano Ronaldo, vamos pedir a quem?", questiona Manuel Cajuda. Na análise do técnico, o internacional português vive uma "luta interna" para perceber se a selecção "lhe pode dar outra vez o título de melhor jogador do mundo". "É uma luta que ele não deveria ter, mas sim limitar-se a jogar, porque não tem nada a provar", resume.

"A ambição e ansiedade dele não estão a ajudar nada. Todos queremos o Cristiano Ronaldo a jogar como no Real Madrid, mas esquecemo-nos que nesta selecção faltam 60% do Real Madrid. Só está ele, o Pepe e o Coentrão", prossegue Cajuda. O ex-treinador da União de Leiria considera ter sido "um erro estratégico" não programar uma selecção "a jogar para o Cristiano Ronaldo": "Não se pode querer que o Ronaldo jogue à Real Madrid quando o resto da selecção não joga assim. Deveríamos ter optado por um outro desenho esquemático e um modelo de jogo mais propício", vinca o técnico.

Cajuda conclui com mais uma questão: "Temos o melhor marcador da Europa em competição. E levámos dias a chorar que não marcamos golos. Não cabe na cabeça de ninguém. Que selecção europeia tem um sector ofensivo tão valioso como Cristiano Ronaldo e Nani?"

"De momento, Cristiano está cego pelo golo. O seu país continua à espera", escreveu Ramon Besa no diário espanhol "El País". Ronaldo tem enfrentado a desconfiança dos adeptos, nos clubes por onde passou como agora na selecção. E tem superado sempre as fases difíceis que atravessa. Levanta-se sempre. Mas na selecção ainda não conseguiu quebrar esta barreira.

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