Os filhos de Vladimir Putin agora voltam-se contra ele

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"As manifestações são a única forma que as pessoas têm de ser ouvidas" Denis Sinyakov/Reuters

Querem o fim da corrupção e um novo modelo social. Saíram para a rua para forçar as mudanças e para dizer que não há líderes indiscutíveis

Num sofá do café Chocolatniza, em frente ao monstruoso edifício do Banco VTB24, Ilia Laputin toma um "latte". Nas mesas, todas ocupadas, do Chocolatniza, uma das cadeias russas de cafetarias concorrentes do Starbucks, mulheres jovens de mini-saias, saltos altos e casacos de pele, e homens jovens de fato brincam com os seus gadgets. Em mais do que uma mesa se pode ver, alinhados como matrioscas electrónicas, um laptop Apple, um ipad e um iphone.

Ilia, de 33 anos, veste fato cinzento e usa o cabelo louro penteado em franja sobre o rosto redondo. "Gosto do meu trabalho", diz ele. "É criativo e variado. Detestaria ficar sentado a uma secretária a desempenhar uma função rotineira". No banco onde está empregado, tem como função contactar com investidores estrangeiros e gerir um produto financeiro. Como Product Manager do VTB 24, um dos maiores bancos da Rússia (de capital maioritariamente público), trabalha muitas horas, mas não se queixa do salário. Está no banco de 10 a 14 horas por dia, por vezes mais. Ao fim-de-semana descansa, se não houver nenhuma emergência.

Ganha 10 mil dólares por mês (120 mil por ano), dos quais paga 13% de imposto sobre o rendimento, como todos os trabalhadores russos. Tem direito a um seguro de saúde, vive com a mulher (que também é funcionária num banco) num apartamento não longe do centro de Moscovo, nas imediações da primeira circular da cidade (o Anel dos Jardins), zona onde as rendas custam sempre para cima de 3 mil dólares por mês.

De casa ao trabalho, usando o metro, demoraria 30 minutos (20 no metro e outros 10 a pé). Mas Ilia precisa de pelo menos uma hora de viagem, porque preferem deslocar-se no seu carro. "Eu e a minha mulher nunca andamos de transportes públicos".

Aos fins-de-semana, o casal descansa numa das suas duas "datchas" (casas de férias). A de Inverno fica perto de Moscovo, a de Verão 300 quilómetros a sul, numa região onde Ilia pode nadar e andar de bicicleta de montanha, os seus hobbies. Nas férias viajam para o estrangeiro. No ano passado visitaram a Austrália.

Ilia Laputin nasceu em Podolsk, uma cidade industrial a 40 quilómetros de Moscovo. Nos anos 90, depois da queda da União Soviética, a zona tornou-se numa das mais perigosas do país, com um surto de criminalidade e actividades das novas máfias. Ilia veio para Moscovo estudar, numa altura em que o ensino ainda era gratuito. Como os pais eram artistas (o pai pintor e a mãe curadora de museus), ele, para contrariar, decidiu estudar ciências. Licenciatura em Física e pós-graduação em tecnologias de laser, na Universidade Russa da Amizade entre os Povos, um estabelecimento que, nos tempos comunistas, era frequentado por estudantes estrangeiros.

Enquanto terminava a pós-graduação, Ilia arranjou, através de um amigo, trabalho em part-time num banco, o Unicredit. A sua função relacionava-se com remote banking, ou seja, cartões de crédito e transferências de capitais. Não se relacionava em nada com a sua área de especialidade, a tecnologia laser. Como também nada tinha a ver com laser o seu segundo emprego, no banco francês Societé General, iniciado mal terminou a pós-graduação, em 2003.

Mas eram os empregos disponíveis, numa altura em que a actividade bancária cresceu rapidamente. Havia tantos que era normal saltar de uns para os outros, consoante as oportunidades. Ilia não tardou a mudar para o italiano Intesa, para onde foi ganhar o dobro, e depois para o VTB24. Sempre por convite, já que os bancos não deixavam os seus créditos por mãos alheias, em termos de caça aos cérebros.

Hoje, Ilia não mudaria de emprego tão facilmente, porque se habituou a uma certa estabilidade. "Já não sou tão jovem, e este é um emprego seguro. Vou aguentar-me aqui mais uns três ou cinco anos. Mas não mais do que isso. Não me imagino a trabalhar no mesmo sítio mais de nove anos".

Quanto à situação social e política na Rússia, o que deseja é o mesmo: estabilidade. "O problema da Rússia não é Putin", diz ele, que ainda não decidiu se, nas eleições de domingo, vai ficar em casa, ou votar no multimilionário Mikhail Prokhorov. "Putin é estável. Com ele, sabemos que continuará a haver vida depois de 2012. E ainda não há uma oposição credível. Serão precisos mais uns cinco anos, até que uma verdadeira oposição se organize".

Será precisa "uma evolução", não "uma revolução". Para já, o que é necessário alterar, pensa Ilia Laputin, é o sistema da corrupção. "As decisões, em toda a administração pública, têm de depender de regras, não podem estar totalmente nas mãos de indivíduos, que tenderão a aceitar subornos".

Estagnação da economia

Natalia Tikhonova, directora do Departamento de Ciências Sociais e Económicas da Academia das Ciências da Rússia, explicou ao PÚBLICO por que razão a nova classe média da Rússia tem todo o interesse em combater a corrupção. "São pessoas que são remuneradas de acordo com o seu capital humano, as suas capacidades intelectuais. Por isso é do seu interesse que os cargos sejam atribuídos aos indivíduos com talento, e não a quem tem um amigo próximo do poder. A meritocracia é o sistema que convém à nova classe média. Querem que haja igualdade perante a lei".

Os jovens com empregos bem remunerados, como Ilia Laputin, "pretendem a mudança do modelo social", explica Natalia. "Eles querem respeitar as autoridades. Para um trabalhador não especializado, é suficiente ter um bom salário. Um elemento da nova classe média quer ver as autoridades como parceiros. Até hoje, as autoridades empregam a classe média. A partir de agora, a classe média acha que ela é que emprega as autoridades, que vivem dos seus impostos".

Nos últimos 12 anos (desde que Putin está no poder), a estabilidade política e social, o aumento dos preços do petróleo, o investimento estrangeiro, e crescimento do sector bancário e financeiro, provocaram o surgimento da nova classe média russa. Hoje, os cidadãos que se podem definir como classe média representam entre 20% e 35% da população.

São, de certa forma, os filhos de Putin, embora agora se voltem contra ele. A sociedade estável que lhes permitiu prosperar já não corresponde hoje às suas necessidades de desenvolvimento. Segundo alguns economistas, a classe média cresceu em número até meados da década passada. Desde então, os seus salários têm subido, mas não o seu número. Isso deve-se à estagnação do modelo económico, que se baseia na exploração de matérias-primas, e não diversificou a produção industrial.

"A nova classe precisa que a economia encontre novas áreas de desenvolvimento, para que haja uma maior procura de especialização. Que a Rússia deixe de ser apenas exportadora de matérias-primas, e que se lance noutras esferas da economia". Profissionais como Ilia Laputin querem poder trabalhar nas áreas para as quais estudaram, e não apenas no sector bancário ou afins. O sistema educativo russo continua a garantir um alto nível de qualidade em muitas áreas de especialização, que não são aproveitadas, numa economia pouco diversificada.

É por isso que a nova classe média tem estado presente nas manifestações anti-Putin, "não porque se interesse por política", porque sabe que os candidatos alternativos não dão garantias de melhor comportamento. Mas para forçar as mudanças. "É um diálogo com o poder", explica Natalia. "As manifestações são a única forma que as pessoas têm de ser ouvidas. Para que Putin sinta que não é um líder indiscutível. As pessoas querem-no na Presidência, mas sabem que se ele tiver 70% dos votos cumprirá apenas 10% das suas promessas. Se tiver apenas 50% talvez cumpra um terço delas".

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