“Mãos de Tesoura” do Hamas preocupam cineastas palestinianos

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Ahmed Abu Naser (à esquerda na imagem) e seu irmão gémeo Mohammed no estúdio da família Mohammed Salem/Reuters

Além da escassez de fundos, equipamentos ou acesso aos estúdios, os realizadores palestinianos queixam-se de ataques à liberdade de expressão no cinema.

Cineastas independentes, citados pela mesma agência, dizem que o Ministério da Cultura local não só controla, como passa a pente fino e manipula os conteúdos cinematográficos que não sigam a linha do movimento islâmico Hamas. “[Fazer] cinema em Gaza é como escrever em rochas com os dedos”, afirma o argumentista e realizador Sweilem Al-Absi.

A lei que vigora na Faixa de Gaza - desde que o Hamas controla de há quatro anos para cá a zona mais sensível do conflito israelo-palestiniano - está nas mãos dos censores culturais que detêm o poder de ver e rever os filmes antes da sua exibição pública.

“Masho Matook”, uma curta-metragem do ano passado, realizada por Khalil al-Muzzayen, está na lista de espera para ser vista em Cannes, mas o Hamas proibiu que a fita seja projectada em Gaza. O filme abalou as autoridades locais por mostrar uma mulher sem véu, a aproximar-se de soldados israelitas, e retrata a interacção entre as tropas de Israel e uma equipa palestiniana de futebol infantil durante a ocupação de Gaza. O ponto da fita que não caiu no goto dos censores corresponde a uma cena de quatro minutos na qual os militares israelitas olham com agrado para uma palestiniana que se passeia de cabelo descoberto. A acção do filme passa-se nos anos 1970.

“Por que negar a realidade?”, questiona o realizador Ahmed Abu Naser, 23 anos, que colaborou com Muzzayen no filme. “É injusto banir um filme só por causa de uma cena que mostra uma rapariga sem véu”, acrescenta. Já o ministro da Cultura Mustafa Al-Sawaf tem outra visão dos quatro minutos cortados. Sawaf classifica as imagens como “fora do contexto” e afirma que “as mulheres palestinianas não fariam isso”. Isso, nas palavras do político, é a mulher “sorrir e olhar para os soldados israelitas, o que não é apropriado”.

"Preservar a herança da comunidade”

Abu Naser - que também realiza filmes com um irmão gémeo - costuma quebrar a linha estética e política dos filmes do regime, mostrando personagens de cabelos longos e a fumar cachimbo. Sawaf, que afirma que a censura nos produtos televisivos e no cinema é mínima, defende-se das críticas, alegando a defesa da tradição islâmica: “Temos que tomar uma posição perante qualquer obra que viole os valores tradicionais, porque queremos preservar a herança da comunidade”.

A zona da Faixa de Gaza não tem cinemas - os três que existiam foram destruídos no decurso dos confrontos. Em contrapartida, as televisões por satélite estão por todo o lado, e a propaganda política, que passa pelo investimento na televisão, em programas educacionais e em vídeos animados alinhados com a ideologia do Hamas.

Por outro lado, são “os cortes, os cortes, os cortes”, como aconteceu na censura prévia aos documentários e à ficção sobre o tema “feminino” - vindos do Egipto, do Líbano, da Tunísia e do México e seleccionados para um festival de cinema organizado pelo Gaza Women’s Affair Center. O realizador Al-Absi fala de “tesouras”, e garante que os cortes que viu fizeram-no “chorar sangue, em vez de lágrimas”. As fitas censuradas pelo Ministério da Cultura tiveram direito a comentários dirigidos aos realizadores.

Numa entrevista de 2009 à jornalista e cineasta canadiana Sabah Haider, radicado em Beirute, o palestiniano Elia Suleiman, realizador de “Intervenção Divina” - um filme de 2002 que arrecadou dois prémios em Cannes – salienta, por sua vez, a pluralidade de vozes presentes no cinema palestiniano. "Não sei se o microcosmos do conflito árabe-israelita é um reflexo do mundo, ou se o mundo é um microcosmos da Palestina. A nível mundial, a Palestina multiplicou-se e criou muitas Palestinas”, acrescentou Suleiman.

Notícia corrigida às 07h37 de 29 de Julho