Portugal sem dinheiro para as grandes obras públicas

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José Sócrates na primeira apresentação do projecto do TGV, em 2005 Foto: Luís Ramos/arquivo

O investimento público tem sido apresentado muitas vezes, sobretudo pelos governos socialistas e pelo executivo de José Sócrates, como uma forma de incentivar o crescimento económico - aliás, na ressaca da crise de 2008, Sócrates criou regimes excepcionais para a Parque Escolar, para acelerar a reabilitação de um pacote de 350 escolas. Hoje em dia, o sector da construção - cuja dimensão tem vindo a sofrer ajustamentos há já nove anos - agradece, com o presidente da Federação da Construção, Reis Campos, a dizer que ele tem sido quase o único balão de oxigénio para o sector.

Mais custos após 2014

A par das escolas, e de alguns outros investimentos pontuais - os incentivos para a dinamização da reabilitação urbana ficaram na gaveta com a queda do Governo -, sobrou ainda o ambicioso plano rodoviário, com a Estradas de Portugal a executá-lo com o lançamento de novas subconcessões. Estavam para ser mais de uma dezena, acabaram por ser contratadas seis, numa altura em que a crise financeira se agudizou, e o próprio Tribunal de Contas chamou a atenção para o acréscimo de custos e chegou a vetar os contratos. A partir de 2014, a factura destas subconcessões soma-se à já elevada factura das Scut, que entretanto começaram a ter portagens.

O pacote rodoviário absorve 51 por cento dos encargos com as Parcerias Público-Privadas, modelo de contratação que acabou por sofrer uma expansão galopante com o Governo socialista, e cujos encargos deverão ascender aos 60 mil milhões de euros até 2050. Isto só com a já mencionada "meia linha" de alta velocidade.

Mas a verdade é que o dinheiro não chega para tudo, a começar pelo TGV, salienta Miguel Frasquilho, deputado pelo PSD. "Neste momento, não há condições: há outras prioridades na economia, que não passam claramente pela alta velocidade", defende este economista.

Suspender esse projecto nunca será simples, no entanto. "Temos de saber que compromissos se assumiram e os custos que poderão existir no caso de uma renegociação para adiar por alguns anos, além de saber com rigor o que acontecerá aos fundos comunitários", admite Frasquilho.

Privatizar, sem aeroporto

Quanto ao novo aeroporto, o modelo de financiamento está associado à privatização parcial da ANA, gestora de sete aeroportos nacionais, incluindo Lisboa, Porto e Faro, e uma das poucas empresas que entregam dividendos ao Estado. Mas Frasquilho defende que "privatizar a ANA sem construir um novo aeroporto é uma possibilidade que tem de ser considerada", lembrando que as receitas podem ajudar no abatimento da dívida pública. Isto em vez de servirem para uma infra-estrutura para a qual não vê necessidade, quando a Portela "teve obras de expansão" e está prevista uma ligação de metro.

Para onde vai então a prioridade "laranja"? Escolas, requalificação dos centros urbanos, dos portos, da ferrovia convencional e da rede de estradas. O CDS-PP alinha pelo mesmo discurso. Pedro Mota Soares, líder parlamentar do partido, atacou num debate recente, no Parlamento, a "teimosia em alta velocidade" do Governo por manter em cima da mesa o troço Poceirão-Caia.

A avaliar pela posição da direita, os últimos anos de Governo socialista podem, pois, transformar-se numa perda de tempo e de recursos em dois dos projectos mais emblemáticos de obras públicas. É quase certo que o novo aeroporto internacional de Lisboa e a alta velocidade ficam na gaveta a médio prazo, se os vencedores das eleições de 5 de Junho forem mais à direita.

Quanto à esquerda, o discurso é mais moderado. Bernardino Soares, do PCP, admitiu recentemente que os principais projectos poderiam ser faseados, mas "sem abandono". E o Bloco de Esquerda concentra as críticas nas Parcerias Público-Privadas, que classifica como "uma negociata".

O caso embrulhado

Passaram quase 10 anos desde a cimeira ibérica da Figueira da Foz, em 2003, quando se acertaram as ligações de alta velocidade ferroviária entre Portugal e Espanha. Mas, desde então, o único resultado visível desta aposta são duas centenas de milhões de euros que o Estado poderá enfrentar em tribunal, em pedidos de indemnização. De fora deste valor, ficam os gastos em estudos e os fundos comunitários que se podem perder.

Em causa, neste momento, está a linha Lisboa-Madrid, com os seus 203 quilómetros de extensão do lado português da fronteira e um investimento previsto de 2,2 mil milhões de euros, incluindo a terceira travessia do Tejo.

Os 165 quilómetros do troço entre Poceirão e Caia deveriam ter sido os primeiros a avançar. O contrato de projecto, construção, financiamento, manutenção e disponibilização daquele troço foi assinado em Maio de 2010 com o consórcio Elos (Brisa/Soares da Costa), numa altura em que já se colocavam dúvidas sobre a exequibilidade do projecto, face à situação das contas públicas. O calendário então definido estabeleceu o início das obras para Setembro de 2010 e a conclusão para o final de 2013, mas esta parceria público-privada deveria alongar-se numa concessão de 40 anos, incluindo a exploração deste troço (com rendas a pagar pelo Estado) e a construção e exploração de uma estação em Évora.

Quase um ano depois, não há obras no terreno: as questões colocadas pelo Tribunal de Contas (TC) obrigaram o Governo a refazer o contrato e o preço final subiu 77 milhões de euros, para 1,55 mil milhões. Mas, ainda sem visto prévio do TC, o Governo remete agora a "batata quente" de uma decisão final para o próximo executivo. Para já, o consórcio vencedor estima em 150 milhões de euros o dinheiro já aplicado - apenas uma parte do que poderá exigir na justiça se o projecto fizer marcha-atrás.

Já os três consórcios que entraram no concurso para o troço Lisboa-Poceirão, suspenso em Setembro de 2010, dizem que irão para tribunal. Tudo somado, as despesas dos consórcios Tave Tejo (que ficou em primeiro lugar, liderado pela espanhola FCC), Altavia Tejo (liderado pela Mota-Engil) e Elos com a participação no concurso totalizam 30 a 40 milhões de euros.

O caso paradigmático das PPP

O recurso ao modelo de Parceria Público-Privada (PPP) para avançar com grandes infra-estruturas, atirando para os privados os riscos de construção e financiamento, e remunerando-os com a exploração dessas infra-estruturas foi ensaiado em Portugal com a Ponte de Vasco da Gama, mas rapidamente se transformou numa fórmula privilegiada de fazer avançar os grandes investimentos.

O problema parece ter sido o facto de se avançar com tal modelo mesmo nos casos em que o uso dessas estruturas a construir não seria suficiente para as remunerar (no caso das estradas e da ferrovia, haver tráfego suficiente para as justificar). No fundo, transformaram-se em complexos contratos financeiros que permitiram "alguma criatividade" na contabilidade desses investimentos, como se lhe referiu o economista João Confraria, em declarações à RTP. O que o Eurostat e o INE acabaram por corrigir, em pleno fim-de-semana pascal (e que levou a uma revisão em alta do défice de 2010 para 9,1 por cento do PIB), atesta isso mesmo: que o entendimento de que as PPP permitiriam realizar despesa e investimento agora, e que esse custo só apareceria nas contas públicas a pagar pela gerações futuras, tem de ser revisto, explica João Confraria.

O critério actual do Eurostat foi obrigar à contabilização imediata das infra-estruturas em que existe tráfego suficiente para que seja a receita de portagens a custear a maioria desse investimento. Isso passou a ser verdade em duas ex-Scut (Costa de Prata e Norte Litoral) e é previsível que também seja verdade no túnel do Marão, que só deverá ser inaugurado no próximo ano. Os estudos de procura destas infra-estruturas são muito importantes, mas têm vindo a ser erradamente subalternizados, como têm alertado vários especialistas em PPP, como Mariana Abrantes de Sousa, que contesta o facto de os concessionários serem remunerados pela disponibilidade da infra-estrutura e não pela utilização que ela tem. Foi o caso das novas subconcessões da Estradas de Portugal, em que os concessionários recebem uma renda, independente do tráfego, para poder ser a Estradas de Portugal a arrecadar as receitas de portagem.

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