Jacques Delors: “A Europa tem uma escolha entre o declínio e a sobrevivência”

Presidente da Comissão Europeia de 1985 a 1995, Jacques Delors liderou a Europa através da maior “aceleração da História” que viveu o projecto de integração europeia.

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Entrevista a Jacques Delors, político francês, ex-presidente da Comissão Europeia PASCAL PAVANI/AFP (ARQUIVO)

Delors esteve em Lisboa na segunda-feira passada para lançar o seu último livro, Mémoires, que é, como disse Cavaco Silva, uma lúcida lição da história recente da União Europeia.

Quando chegou a Bruxelas, em 1985, a Europa estava mergulhada numa crise. Quando saiu, dez anos depois, não só tinham ultrapassado essa crise como vencido um dos maiores desafios da sua história, a queda do Muro de Berlim. Hoje, a Europa está outra vez numa crise profunda. E há quem diga que seria preciso um novo Jacques Delors para a vencer. Isso chegaria, desta vez?
Podemos ler esta crise de duas maneiras. Há actualmente uma conjuntura que não é favorável, porque os países europeus dividiram-se na sequência da intervenção americana no Iraque e disseram-se uns aos outros coisas pouco agradáveis. O clima não é bom mas ainda não se fala de divórcio. A tarefa mais urgente é restabelecer um ambiente de disponibilidade para se escutarem uns aos outros.

Quanto ao resto, é evidente que, de cada vez que a Europa dá um novo passo em frente, põe o seu título em jogo. Apesar de tudo, beneficiei de uma conjuntura favorável, por isso não estou seguro de que um outro Delors fosse suficiente para resolver os problemas.

Relançou a Europa a partir do Mercado Único, que desencadeou um novo élan.
É verdade. Quando, antes de iniciar funções em Bruxelas, fiz uma ronda pelas capitais, propus-lhes três saltos qualitativos: uma reforma radical das instituições para decidir melhor e mais depressa; uma moeda única; uma defesa comum. Estas ideias não estavam suficientemente amadurecidas.

Foi por isso que tive de seguir outra ideia — fazermos um grande mercado único, que estimularia as nossas actividades, que nos permitira voltar a ter confiança em nós próprios. É sempre preciso partir de um consenso dinâmico. Foi o caso.'

O Mercado Único, com o Acto Único Europeu, que diz ser o seu tratado preferido, acabou por permitir também um salto na integração política.
Houve aquilo a que se chama uma engrenagem virtuosa. Para construir este grande mercado era preciso alterar o tratado de forma a poder decidir por maioria qualificada. E aproveitei também para juntar esse pilar fundamental que é a coesão económica e social.

Finalmente, disse-lhes que era preciso ter os meios financeiros que traduzissem essa nova vontade política. Foi o primeiro Pacote [Pacote Delors I]. Esta engrenagem correu bem e permitiu à Europa reencontrar confiança em si própria.

Escreveu nas suas Memórias que os países membros não deram suficiente atenção ao seu Livro Branco [de 1993] para a competitividade, crescimento e emprego, que não fizeram as reformas necessárias. Crê que a Europa está condenada a pôr em causa o seu futuro como grande potência económica?
Em 1993 — relato-o nas minhas memórias —, as respostas dos vários governos foram positivas. Embora conhecesse bem o estado de espírito dos ministros das Finanças, não esperava que o Livro Branco viesse a ser relegado para um armário ao fundo da sala.

Mas hoje é de novo preciso gritar que a Europa tem uma escolha entre a marginalização ou a sobrevivência, o declínio ou a sobrevivência. Porque o mundo anda depressa. No plano tecnológico, económico, das relações geopolíticas.

O princípio da coesão económica e social vai ser posto agora à prova com o alargamento. Com os limites de que se fala para o orçamento comunitário, parece-lhe possível fazer uma integração feliz de dez países que vão entrar?
Devem lembrar-se que consegui por duas vezes um aumento do "plafond" das despesas da União — 1, 20 por cento da riqueza comunitária e, depois, 1, 27 por cento.

Estamos ainda longe desse limite e temos uma margem de manobra para respeitar, no seu espírito, a coesão económica e social que deve aplicar-se a todos os países de acordo com as suas necessidades.

Não se trata apenas de fazer assistência social aos países mais pobres. Trata-se de um elemento que é o cimento da construção europeia. E trata-se também de fazer mais esforços em matéria de investigação e de inovação e nas infra-estruturas — tudo o que nos torna mais competitivos e permite aumentar o nível de vida e o emprego.

Nessa altura, para convencer os países ricos, disse-lhes que não se tratava de um jogo de soma zero, mas de soma positiva.
Durante o seminário em que participei, indiquei as três finalidades da construção europeia: a paz, a modernização económica e a existência política. É preciso acrescentar um outro: a coesão económica e social. Estou convencido dos benefícios deste princípio, traduzidos no apego das populações à Europa. Se o negligenciarmos, a Europa não terá alma.

A tentação intergovernamental é já antiga. Mas agora agravou-se. Não pensa que, quando a União quer avançar em domínios que dizem respeito ao núcleo duro da soberania nacional, como as polícias, a defesa, a política externa, tem de encontrar uma nova forma de intergovernamentalismo?
Compreendo isso. Mas chegámos a uma situação em que o método comunitário perdeu parte do seu vigor e do seu atractivo e em que os chefes de Governos reúnem-se quatro vezes por ano e pensando que resolvem tudo. É uma ilusão. Desde que a diplomacia existe que se conhecem os limites do método intergovernamental. O método comunitário permitiu à Europa avançar.

Não digo que bastasse aplicar o método comunitário à política externa para que as divergências desaparecessem por milagre. Mas defendo que seja aplicado primeiro a este grande espaço económico e social que estamos a construir a 25 e, depois, a 27. Não desejo uma UE conduzida por um trio.

Quando era presidente da Comissão, tinha o apoio de um eixo franco-alemão forte que lhe foi útil para fazer avançar as suas propostas. Hoje, o eixo Paris-Berlim é objecto de uma forte controvérsia. Uns dizem que prepara um "directório", outros, que tem vistas curtas. E o senhor o que diz?
Estou contente com o facto de eles se entenderem e de apresentarem posições comuns. Sobre o que, depois, fazem delas, não me pronuncio, mas não sou a favor de uma incompreensão duradoira entre as autoridades francesas e alemãs. E não ouvirá mais nada de mim sobre esta matéria.

Quanto ao período que vivi, é verdade que o par franco-alemão era muito útil mas, para mim, todos os membros do Conselho eram úteis. É o princípio da igualdade, que Portugal leva tão a peito. Há um espírito de família, que pode ou não existir. É algo de indefinível mas, durante anos, tive a sorte de viver numa Comunidade que tinha esse espírito de família.

Agora, ao eixo franco-alemão, parece juntar-se cada vez mais um outro parceiro — a Inglaterra. Teve enormes divergências com Thatcher...
Mas respeitando-a...

Blair é outra coisa?
É inglês acima de tudo. Tenho uma grande estima pessoal por ele. Mas o comportamento dos ingleses é imutável.

Sobre o Iraque...
Não, não. Falo da sua acção na Convenção e no último Conselho Europeu de Bruxelas, em que tentaram arrancar mais algumas pequenas concessões complementares, enquanto os outros estavam à espera que o senhor Berlusconi os recebesse. A Grã-Bretanha é sempre igual a si própria.

Apesar de tudo, há a defesa.
Sim, há a defesa. Blair queria colocar a Grã-Bretanha no coração da Europa e encontrou o meio através da defesa. Mas, por enquanto, não acredito num trio que seja suficientemente unido para conduzir toda a Europa e, de resto, não o desejo. Porque o que desejo é que todos os países em equipa construam a Europa.

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