Um massacre em que ainda ninguém pôs a sua assinatura

É terrorismo, e o Presidente e primeiro-ministro franceses dizem que “está ligado ao islamismo radical.” Mas a noite de terror em Nice, que já fez 84 mortos, ainda não foi reivindicada.

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A arma usada no ataque de Nice foi um camião frigorífico AFP/ANNE-CHRISTINE POUJOULAT

O que passou pela cabeça de Mohamed Lahouaiej Bouhlel, o condutor do camião frigorífico de 19 toneladas que usou como uma poderosa arma letal contra a multidão que se juntou no Passeio dos Ingleses, na cidade turística de Nice, em França, para assistir ao fogo-de-artifício do feriado nacional, o Dia da Bastilha? Matar indiscriminadamente, crianças e adolescentes também – pelo menos dez – em resultado de uma inspiração terrorista, de um ajuste de contas com a humanidade, talvez. Mas porque é que tinha também réplicas não funcionais de espingardas na parte de trás do camião, uma Kalashnikov e uma M16, juntamente com a bicicleta?

Esperaria o francês de 31 anos nascido nos arredores de Sousse, na Tunísia, conseguir fazer uma improvável fuga do local do atentado na sua bicicleta, abandonando o pesadelo que tinha acabado de criar? Isso era impossível. Três polícias dispararam contra o camião e o condutor ainda percorreu cerca de 300 metros, a responder aos tiros, até parar, descreveu o procurador de Paris François Mollins, responsável pelas investigações antiterrorismo, que está a conduzir o inquérito do caso de Nice.

Para trás, deixava um massacre, comparável aos dos atentados de Paris de Novembro de 2015, mas em que a arma usada foi um veículo alugado – que aliás já deveria ter devolvido um dia antes. O balanço, ao fim da tarde, ia em 84 mortos, entre os quais dez crianças ou adolescentes, e 202 feridos, 52 em situação em situação de urgência absoluta. Destes, disse o Presidente François Hollande depois de visitar o Hospital de Nice onde estão internados, 25 estão “entre a vida e a morte.” Estes números não serão ainda definitivos.

Como uma guerra

Na madrugada a seguir ao ataque, ainda havia pais à procura dos seus filhos nos hospitais, descreve a correspondente do Guardian em França, Angelique Chrisafis. “O pior era a quantidade de crianças que continuava a chegar ao hospital, e os ferimentos que tinham – traumatismos severos e membros partidos. E as emoções sentidas pelas crianças e pelas famílias”, disse Frederic Sola, um cirurgião ortopédico pediátrico que estava de serviço. “As crianças estavam muito feridas, fisicamente, mas também muito magoadas emocionalmente.”

“É como se tivéssemos de gerir 100 acidentes de viação de uma vez, com inúmeros politraumatismos”, disse ao Le Monde Nicolas Venissac, cirurgião torácico do Hospital Pasteur II de Nice, para onde foram conduzidos a maioria dos feridos. “Os urgentistas estavam chocados. Assistimos a um massacre. Quanto vimos chegar tantos pacientes com ferimentos graves, lesões destrutivas, de forma tão maciça, isso evoca uma situação de guerra”, comentou ainda o médico anestesista-reanimador.

Ainda há pessoas desaparecidas e, entre as vítimas, contam-se as mais variadas nacionalidades: marroquinos, tunisinos, norte-americanos, arménios, russos, suíços, alemães, britânicos, ucranianos e, claro, franceses. Alguns sobreviventes dos atentados de Novembro em Paris perderam família e amigos agora em Nice. Ainda não se conhece a identidade de todas as vítimas.

Bouhlel não era conhecido dos serviços secretos. Tinha cadastro – por um episódio de fúria na estrada após um acidente de viação, em que brandiu uma arma, em Março passado. Foi condenado a seis meses de prisão (pena suspensa), mas pagou uma coima e o caso estava resolvido – e não havia nenhum alerta de radicalização em seu nome, assegurou o procurador Mollins.

O ataque não foi reivindicado por nenhuma organização terrorista, “mas o modo de operação corresponde aos apelos ao homicídio” feitos por grupos jihadistas como o Estado Islâmico, sublinhou o procurador, subscrevendo declarações feitas pelo Presidente Hollande ainda de madrugada.

A investigação vai procurar apurar se haverá eventuais cúmplices – a ex-mulher de Bouhel foi detida – mas buscas feitas no apartamento não revelaram novas pistas. Apesar de ter sido anunciado o restabelecimento do estado de emergência por mais três meses, este tipo de ataque, de um “lobo solitário”, como o de Omar Mateen, o atirador de Orlando que tomou de assalto uma discoteca LGBTI, é o mais difícil – se não praticamente impossível – de travar. Sem estarem directamente relacionados com nenhuma rede terrorista monitorizada – embora possam ter simpatia ou sentirem-se inspirados por uma determinada ideologia ou organização – é muito difícil prever quando ou até mesmo se alguma vez vão atacar.

Os motivos do atacante, no entanto, não são ainda conhecidos, frisou o ministro do Interior, Bernard Cazeneuve. “Temos um indivíduo não era conhecido dos serviços de informação por actividades relacionadas com o islão radical”, disse na televisão TF1. Interrogado sobre se poderia confirmar que a sua motivação estaria relacionada com o jiadhismo, respondeu com um sintético “não”.

Mas o primeiro-ministro Manuel Valls, noutro canal, não se coibiu de afirmar que o autor do atentado “estava sem dúvida ligado ao islamismo radical.”

Jihad Nice

O facto de este atentado ter acontecido em Nice, no entanto, não espanta quem conhece o historial desta cidade, que é um dos principais pontos de preocupação em França no que toca ao recrutamento jihadista. Pelo menos 55 habitantes da capital da Côte d’Azur e de outras cidades do departamento Alpes Marítimos partiram para combater na Síria – incluindo uma família de 11 pessoas.

David Thomson, autor de um livro sobre o jihadismo em França, fala numa centena. Muito disso se deveu ao franco-senegalês Omar Omsen, um dos mais activos recrutadores em território francês e o 14º na lista da ONU dos homens mais procurados do mundo por terrorismo, segundo a revista L’Express.

Nice, cidade onde se juntaram muitos dos franceses que tiveram de voltar para a Metrópole quando a Argélia declarou a independência – e que, por isso, é feita de um caldo de velhos ressentimentos coloniais e novas dinâmicas. Nos Alpes Marítimos, a direita é a principal força política e a extrema-direita da família Le Pen a segunda. Aliás, foi aqui que o patriarca Jean-Marie Le Pen construiu o seu primeiro feudo.

Há um ano, começou a funcionar, ao nível do departamento Alpes-Marítimos, um programa de vigilância de sinais de radicalização. Professores, assistentes sociais, médicos, polícias, guardas prisionais e outros profissionais são treinados para detectarem sinais de que alguém se está a radicalizar para poderem dar o alerta. A base para a detecção é uma grelha desenvolvida pelo Ministério do Interior francês, explica a revista The Economist.

“Devemos ser honestos”, critica David Thomson, o autor da investigação sobre os jihadistas franceses. Estes programas não desradicalizaram ninguém. Ainda há pouco tempo, uma rapariga de 15 anos dos Alpes franceses foi apanhada quando estava a apanhar um avião para fugir para a Síria – e tinha passado algum tempo num programa de desradicalização, sublinhou à Economist.

A humilhação social é o que leva estes adolescentes para a jihad – e talvez os mais velhos, como o autor do atentado de Nice. Compreender porque é que isto acontece é tão importante como a vigilância, sublinha Thomson. 

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