O mistério constitucional do Brasil

Um vice-presidente que assume a presidência desta forma tem legitimidade para modificar a orientação política sob a qual foi eleito?

O Brasil tem um regime presidencialista. O governo do país é dirigido pelo presidente da República, eleito com base num programa sufragado pelo voto popular. A última eleição teve lugar em finais de 2014, tendo Dilma Rousseff sido eleita maioritariamente contra a linha proposta pelo seu opositor conservador.

No modelo presidencialista brasileiro (tal como nos EUA), os candidatos à presidência apresentam-se com um vice-presidente, para uma eventual necessidade de substituição. O vice-presidente não tem um programa próprio, isto é, sendo eleito conjuntamente, compete-lhe aplicar o programa na base do qual foi eleito o presidente – a pessoa em quem os eleitores efectivamente votaram.

Para aprovar medidas de natureza legislativa, mas não para a gestão política corrente, o presidente brasileiro necessita de ter apoio no Congresso – constituído pela Câmara de deputados e pelo Senado. Contudo, a sobrevivência do governo não depende da confiança parlamentar. Em teoria, o governo não necessitaria sequer de incluir parlamentares, mas, naturalmente, o presidente segue esse princípio, para garantir uma constante base de apoio para processo legislativo.

A presidente Dilma Rousseff encontra-se suspensa das suas funções (em teoria, apenas por 180 dias), face a acusações de que teria infringido alguns dos seus deveres constitucionais. Os defensores da presidente entendem que as razões invocadas para o seu afastamento não têm um fundamento que justifique a destituição e que todo o processo não passa de um "golpe", que gritam pelas ruas. Como dizem os juristas, a doutrina sobre este tema divide-se, pelo que não quero chamar essa polémica para aqui.

Na pendência do esclarecimento das questões que envolvem a presidente, o vice-presidente da República assumiu o seu cargo. Em tese, se o Senado brasileiro concluir pela inocência da presidente, esta poderá regressar ao cargo e o vice-presidente deixará as funções que interinamente está a desempenhar. Porém, se a presidente for afastada, e o vice-presidente assumir em plenitude o cargo até ao fim do mandato, que programa está este obrigado a aplicar ? Naturalmente aquele sob o qual foi eleito, isto é, o programa cuja aprovação popular lhe permite estar ocupar o cargo.

É que, entretanto, não houve novas eleições, pelo que só pode prevalecer a vontade maioritária expressa nas urnas da última vez que os cidadãos foram chamados a tal. Mas, perguntará o leitor, e a vontade do parlamento, o sentimento anti-Dilma evidenciado? O regime brasileiro não é parlamentar, não escolhe o governo e este não responde constitucional e programaticamente perante o Congresso.

Assim, um vice-presidente da República que assume a presidência desta forma tem legitimidade para modificar a orientação política sob a qual foi eleito? Pode um presidente nestas condições aplicar um programa que não só é decalcado do programa derrotado nas últimas eleições presidenciais como vai muito mais longe no seu afastamento face ao programa eleito?

Na realidade, se acaso há um "golpe" político no Brasil, é este.

Embaixador

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