O exército político de Bill Gates

O homem mais rico do mundo quererá ser Presidente dos Estados Unidos? Talvez não. Mas isso não significa que esteja afastado dos corredores de Washington.

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Durante três décadas, dividiu a sua imagem entre o jovem geek que hipnotizava professores e fabricantes de computadores com passes de mágica no mundo da linguagem de programação e o empresário implacável que não hesitava em humilhar funcionários quando começavam a gaguejar a meio de um PowerPoint mal preparado. Coleccionou ameaças de morte, serviu de alvo a atiradores de tartes de nata e foi acusado de querer dominar o planeta Terra aos comandos da sua gigantesca nave Microsoft. Está tudo arquivado na Internet, esse novo mundo que Bill Gates ajudou a espalhar com um navegador que há muito é ridicularizado pelas novas gerações de geeks — o Internet Explorer —, mas a memória colectiva viu-se forçada a apagar muitos desses ficheiros nos anos mais recentes. Gates, o homem que todos adoravam odiar, foi deixando cair a pele de inimigo público n.º 1 dos defensores do software livre e transformou-se num dos mais importantes filantropos da História, com uma relevância para o dia-a-dia de milhões de pessoas em todo o mundo que nem uma hipotética passagem pela Casa Branca poderia superar. Palavra de Bill Gates.

A pergunta pode parecer estranha a muita gente, mas há quem a faça de tempos a tempos, deixando o próprio fundador da Microsoft e co-responsável pela Fundação Bill e Melinda Gates à procura das palavras certas para resolver a questão de uma vez por todas, aparentemente sem grande sucesso: será que lhe passa pela cabeça candidatar-se, um dia, a Presidente dos Estados Unidos da América?

Em 2012, durante a secção de perguntas e respostas na Conferência sobre Media de Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, Gates não só afastou essa hipótese, como deu a entender que isso não seria necessariamente uma promoção para quem tem como objectivo erradicar do planeta a poliomielite, a malária ou a tuberculose.

“Estou comprometido a tempo inteiro com o meu trabalho na fundação. Não me reformei da Microsoft por achar que as coisas estavam a ficar aborrecidas, mas porque percebi que o mundo da filantropia era onde a minha contribuição poderia ser mais importante, e é nisso que irei trabalhar a tempo inteiro para o resto da minha vida. Acredito — embora possa estar errado — que posso ter o mesmo impacto nesta função que teria em qualquer função política.”

E, para quem ficou com dúvidas, ficou também uma declaração, ao que parece irrevogável. “Seja como for, nunca concorreria a cargos políticos. Na minha fundação, não preciso de angariar fundos, não preciso de organizar campanhas políticas, não tenho de me esforçar para ser eleito e não tenho um mandato com um limite de oito anos. É um cargo muito confortável. Isso não significa que não aconselhe o Presidente, como tenho feito, tal como acontece com a Microsoft.”

Mas a falta de vontade para chegar à Casa Branca não significa que o universo Bill Gates ande afastado dos corredores de Washington. Muito pelo contrário.

O desprezo perceptível em cada resposta dada ao Congresso norte-americano durante o processo em que a Microsoft se viu acusada de monopólio, no final da década de 1990, deu lugar a uma visão mais pragmática: se antes lhe parecia que ninguém podia travar o seu plano de conquista do mundo através dos computadores pessoais, a última década encarregou-se de lhe indicar um caminho que transformou em aliados muitos dos mesmos que há apenas 15 anos lhe causaram uma enorme dor de cabeça judicial.

Impedido por lei de influenciar os legisladores directamente através da sua fundação, Bill Gates tem doado somas astronómicas para projectos que vão desde o combate a doenças em vários pontos do globo, à educação nos Estados Unidos, passando pelas energias renováveis e pela reforma da lei da imigração — há apenas três meses, a Fundação Bill e Melinda Gates passou uma parte do cheque de 25 milhões de dólares que entrou na conta do programa TheDream.us, destinado a atribuir bolsas de estudo a jovens imigrantes sem documentos. Com a reforma da lei da imigração enfiada na gaveta das desavenças políticas — e partidárias — do Congresso norte-americano, incentivos como este são determinantes para fazer mexer os legisladores. E que pouco afectam a fortuna pessoal do homem que este ano voltou a ser considerado o mais rico do mundo pela revista Forbes.

“Poucos duvidam de que Gates tem influência numa vasta área de acção: tal como o seu trabalho na educação tem demonstrado, as suas prioridades transformam-se rapidamente em prioridades estaduais e federais. As suas ideias dão origem a mudanças de milhares de milhões de dólares nos gastos públicos”, escreveram no mês passado, no site Politico, as jornalistas Stephanie Simon e Erin Mershon, especialistas em educação e tecnologia.

É um rio de dinheiro que não pára de correr em direcção às causas defendidas pela versão 2.0 de Bill Gates, o homem que em tempos dormia vários dias consecutivos no seu gabinete na Microsoft para impedir que outros gigantes da tecnologia se intrometessem entre ele e o seu exército de computadores pessoais espalhado um pouco por todo o mundo.

Uma startup de beneficência

A Fundação Bill e Melinda Gates foi criada em 1997. Tudo começou quando Bill e a mulher leram um artigo no The New York Times, escrito pelo jornalista Nicholas D. Kristof. O jornal falava de crianças que morriam de doenças de que já ninguém ouvia falar nas ruas dos Estados Unidos: “Para o Terceiro Mundo, a água ainda é uma bebida mortífera.” Depois de ler o artigo, Bill Gates escreveu ao pai (advogado e filantropo), Bill Gates Sr., e deixou o desafio: “Pai, talvez consigamos fazer alguma coisa para resolver isto.”

Os anos que se seguiram foram definindo as prioridades da fundação: a erradicação da poliomielite, o acesso à Internet em todas as bibliotecas públicas dos Estados Unidos, o reforço da escolaridade entre os cidadãos de minorias étnicas, um programa de vacinação em todo o mundo.

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Bill gates e a mulher, Melinda, em 2005 quando foram eleitos "pessoa do ano" pela Time, juntamente com Bono FABRICE COFFRINI/AFP

Quase duas décadas depois, a Fundação Bill e Melinda Gates tem 40 mil milhões de dólares ao seu dispor, para distribuir por um tão vasto conjunto de causas e interesses que já se tornou uma das mais influentes máquinas de pressão política dos Estados Unidos. E não se trata apenas de ter as pessoas certas a trabalhar ao seu lado; mais importante do que isso, Bill Gates tem agora as pessoas certas a trabalhar ao lado do Presidente Barack Obama. Muitas delas saíram da fundação para o Governo norte-americano, como Margot Rogers, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado da Educação, Arne Duncan; Jim Shelton, vice-secretário de Estado interino da Educação; Sylvia Mathews Burwell, responsável pelo Orçamento na Casa Branca; ou Rajiv Shah, director da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional.

Bill Gates está a substituir o seu exército de computadores pessoais da era dourada da Microsoft por um exército de antigos funcionários da sua fundação, estrategicamente colocados nos gabinetes em que se decidem muitos dos programas em que ele e a mulher estão envolvidos.

Juntos “definiram uma agenda e um mecanismo para alcançarem os seus objectivos”, disse ao site Politico Scott Thomas, director da Faculdade Ensino da Universidade Claremont Graduate, uma instituição privada do estado da Califórnia. “É tão simples quanto isto: provaram que é possível usar os recursos da fundação para influenciar de facto as decisões a nível federal e estadual — e também os fundos que vêm com essas decisões.”

Com o passar dos anos, as visitas de Bill Gates ao Congresso deixaram de ter na agenda assuntos relacionados com monopólios, computadores pessoais, sistemas operativos ou navegadores de Internet. O jovem arrogante, que iria mudar o mundo com um computador de cada vez, deu lugar a um homem mais descontraído, mais disposto a brincar com a sua própria imagem, mas ainda assim — ou mais do que nunca, por estar cada vez mais perto do poder —, cheio de certezas, mergulhado em ambições e com uma abordagem de gestão semelhante à da indústria tecnológica: primeiro experimenta-se, e se não resultar, paciência.

Um dos melhores exemplos deste tipo de abordagem ficou patente numa das mais controversas contribuições da Fundação Bill e Melinda Gates na área da educação. Acusados por muitos de estarem a pôr em perigo o ensino público nos Estados Unidos, os Gates põem dinheiro todos os anos num programa que dá aos pais a oportunidade de assumirem o controlo de escolas que não apresentem resultados positivos — um dispositivo legal conhecido como parent trigger, apoiado pelo republicano Mitt Romney mas também pelo actual secretário de Estado da Educação, e que na prática transforma uma escola pública numa escola com fundos públicos gerida por privados.

“Muito antes de ter apoio político, muito antes de sabermos que isto poderia funcionar, a Fundação Gates investiu muito em nós e manteve-se do nosso lado”, diz Ben Austin, responsável pelo grupo que defende o alargamento do parent trigger no país, o Parent Revolution.

A influência da Fundação Bill e Melinda Gates salta à vista. Antes de o casal ter começado a transferir centenas de milhares de dólares por ano para a conta da Parent Revolution, o parent trigger só existia na Califórnia; nos últimos quatro anos, seguiram-se Luisiana, Mississípi, Connecticut, Texas, Indiana e Ohio.

Michael Petrilli, vice-presidente, do Instituto Thomas B. Fordham, um think tank conservador, não tem dúvidas: “É uma das forças com mais influência nas políticas de educação dos Estados Unidos, ao mesmo nível do Departamento de Educação. Sem dúvida.”

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Para liderar a fundação "não preciso de ser eleito", diz Bill Gates Rick Wilking/REUTERS

Um Presidente multimilionário

E estará Bill Gates realmente satisfeito com a sua crescente influência na política dos Estados Unidos ou poderá um dia alterar a decisão irrevogável tornada pública naquela conferência em Abu Dhabi, há dois anos?

O desafio foi lançado na semana passada por Ralph Nader, o activista norte-americano que concorreu cinco vezes às presidenciais nos Estados Unidos e que ainda hoje é acusado de ter desequilibrado a balança das eleições de 2000 a favor de George W. Bush, ao roubar votos a Al Gore na Florida: e se a única forma de quebrar a hegemonia de republicanos e democratas for a candidatura de um multimilionário?

Vinda de um dos mais conhecidos porta-vozes não oficiais do movimento Occupy, a ideia de empurrar para a Casa Branca um membro do exclusivo clube em que só entram 1% da população é estranha e foi recebida com sentimentos contraditórios nas redacções e nas redes sociais.

Nader compilou uma lista com 20 nomes, e lá estavam Bill Gates, Oprah Winfrey ou Ted Turner — ou, como o activista lhes chama, Pessoas Ricas Moderadamente Esclarecidas (MERPs, no termo cunhado por Ralph Nader), as únicas que podem furar a “exclusão de candidatos independentes ou de outros partidos devido à existência de barreiras financeiras que impedem o acesso aos boletins de voto”.

“Actualmente, só as pessoas muito ricas e moderadamente esclarecidas podem ter hipóteses de quebrar este círculo vicioso de oligarquia política, que recebe a aprovação das pessoas ricas não esclarecidas, que define as suas próprias regras, que faz as suas próprias leis, que nomeia os seus próprios juízes e que até força descaradamente os contribuintes a financiar as suas convenções políticas”, escreve Ralph Nader no seu texto, a que chamou “Vinte multimilionários e megamultimilionários que poderiam concorrer à Presidência dos Estados Unidos em 2016 para desfazer o duopólio desde as primárias ao dia das eleições”.

Apesar do esforço de Ralph Nader — que funciona mais como uma chamada de atenção do povo para o que os muito ricos podem fazer com as suas fortunas —, apostar numa candidatura de Bill Gates à Presidência dos EUA em 2016 não faz muito sentido. Para além do compromisso assumido para toda a vida com as causas que defende, Gates regressou no mês passado à Microsoft, depois da saída do presidente executivo, Steve Ballmer, e da substituição deste por Satya Nadella. Oficialmente será conselheiro do novo presidente executivo, mas o mundo da tecnologia sabe que Gates despiu finalmente o traje de rainha da Microsoft que passeou durante a última década; a partir de agora, a última palavra poderá nem sempre ser a dele, mas ninguém duvida de que será uma espécie de ventríloquo escondido atrás de muitos futuros anúncios da empresa.

Tudo porque só há uma coisa que controla o Bill Gates geek e o Bill Gates filantropo: a vontade de controlar. Não é possível fechar os olhos aos dois Bill Gates que conviveram no mesmo corpo em diferente épocas da História recente dos Estados Unidos, mas a forma como ambos se exprimem em público indica que um dificilmente poderia existir sem o outro.

O jovem empresário implacável revelou desde muito cedo a sua tendência para a confrontação. Num artigo da revista Time, publicado em Janeiro de 1997, contava-se um diálogo entre um pré-adolescente Bill e a sua mãe, Mary Maxwell, que deixava antever a forma como muitos futuros funcionários da Microsoft iriam ser tratados. “O que estás a fazer?”, perguntou ela, quando Bill nunca mais chegava à mesa para jantar. “Estou a pensar.” “Estás a pensar?” “Sim, mãe, estou a pensar. Alguma vez tentaste fazer isso?”

Não escondia o tamanho do ego, mesmo quando reflectia, com humor, sobre se o Universo tinha um significado maior do que aquele que nos é dado a ver. “Nunca vamos ter a certeza, mas é possível que o Universo exista apenas por causa de mim. Se for assim, tenho de admitir que me está a correr bem”, citava a Time.

Steve Ballmer, o 30.º funcionário da Microsoft e presidente executivo durante 14 anos, dizia que Bill Gates levou para a empresa “a ideia de que o conflito pode ser bom”. Quando algo não corria bem durante a apresentação de um novo programa ou serviço, era comum ouvir-se uma voz a gritar: “Isso é a coisa mais estúpida que eu já ouvi.” Era assim que Gates mantinha os seus “fluidos competitivos”, como lhe chamava Steve Ballmer.

Mesmo quando conheceu Melinda, a mulher que lhe iria mostrar o caminho da filantropia, o Bill Gates que dedica agora grande parte da sua vida a tentar erradicar doenças nas zonas mais pobres do mundo estava longe de sair da carapaça hermética da obsessão com os resultados. Quando Melinda, católica devota, lhe prometeu confiar a formação religiosa da sua filha Jennifer se ele passasse a frequentar a igreja, Bill respondeu como se estivesse a falar com um funcionário da Microsoft: “Em termos de alocação de recursos de tempo, a religião não é muito eficiente. Posso fazer muito mais coisas numa manhã de domingo.”

Será esse o principal obstáculo a um Bill Gates político, capaz de decidir, mas também de ouvir. Patricia McGuire, presidente da católica Universidade Trinity Washington, refere-se a Gates, “Deus o ame”, como um homem “bem intencionado”. Mas: “Apesar de o aplaudir por querer solucionar problemas, por vezes a sensação de que a fundação sabe sempre o que é melhor torna-se um problema, porque eles nem sempre têm a melhor solução. É preciso ouvir as pessoas que queremos ajudar, se queremos ajudá-las da melhor forma.”     

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