O crepúsculo de Merkel

Com a sua saída de cena terminará um ciclo político europeu de divisão, crise social, estagnação e relativismo cultural que deixará poucas saudades.

É irónico que uma parte da esquerda portuguesa que demonizava Angela Merkel, durante a execução dos resgates financeiros à Grécia e a Portugal, verta hoje lágrimas de crocodilo pelo seu isolamento político e pelos seus revezes em eleições regionais, às mãos de uma direita dura que surfa uma onda popular hostil à sua desordenada política de imigração e asilo.

Escrevemos neste jornal que, quando abriu as portas a um milhão de refugiados e migrantes extra-europeus, proferindo a célebre frase “nós podemos fazê-lo”, Merkel assinou a sua sentença de morte política. Entretanto, foi sentenciando outras mortes colaterais, como a da saída do Reino Unido da União Europeia, opção triunfante em referendo pela curta margem de 4%, no contexto de uma campanha em que a invasão migratória autorizada pela Chanceler foi tema decisivo.

“Nós podemos ?!”.  Hoje, esta lapidar sentença perdeu utilidade marginal junto da própria Merkel que, em setembro, confessou que “essa frase terá sido talvez exagerada, de tal forma que prefiro não a repetir” tornando-se uma “expressão vazia de sentido”. Para o Figaro tratou-se da admissão de uma derrota. Derrota refletida tanto em sondagens como em eleições. Em maio, uma pesquisa da "Fors"a indicava que 2/3 dos inquiridos recusava a Merkel um novo mandato. E na Focus, em outubro, 60%, dos alemães exigia a fixação de um “teto” às migrações. O desencanto do eleitorado conservador da CDU (que pensa que Merkel guinou de tal modo à esquerda que podia chefiar o SPD) foi habilmente aproveitado pelo AfD, um partido de direita radical, eurocética e anti-imigração, liderado pela insinuante Frauke Petry. Dos 4,7% obtidos nas eleições federais de 2013, o AfD, partindo do zero atingiu valores de dois dígitos, entrando em 10 dos 16 parlamentos dos estados federados e chegando a alcançar 20,8 % no Mecklenburgo e 24,2% na Saxónia-Anhalt. Se as eleições se realizassem hoje seria, quiçá, o terceiro partido, com 15%. O pânico assomou os dirigentes da CDU e o chefe do governo bávaro, Seehofer, da CSU, deu sinais de poder fraturar a União

A indiferença de Merkel ante a espiral terrorista islâmica do Verão e a sua obstinação em não ceder um milímetro da sua política migratória carente de qualquer plano, ignorando os apelos dos seus correligionários (e as críticas dos parceiros sociais-democratas do SPD e até do “Die Linke”) levou a que no dia da unidade alemã, em Desden, fosse apupada nas ruas. Para alguns, Merkel seria uma estadista “decisionista”, que não se importaria, em nome das suas convicções morais, em impor políticas impopulares. Para outros, como o psiquiatra Hans Maaz, seria uma narcisista obcecada com o legado da sua imagem e tentada a tomar decisões emotivas e não racionais, em total estado de negação em relação ao seu impacto negativo e à reação hostil dos alemães.

“Merkeldämmerung”. Merkel bem sabe que não tem rivais no partido, pois criou um deserto à sua volta. Afastou dirigentes que lhe poderiam fazer sombra, como Norbert Röttgen e Friedrich Merz, domesticou ministros como Schäuble e Ursula von der Leydee e menorizou os líderes regionais. E sabe, ainda, que a perda de cerca de 10% do eleitorado cristão-democrata não obsta a que este bloco continue à frente do SPD nas sondagens, permitindo-lhe em 2017 formar com estes um novo Governo, se necessário com a adição de Liberais e “Verdes”.

Mas mesmo vencendo essas eleições com maioria relativa, é provável que a nova coligação de Merkel não chegue ao fim. Internamente, o borbulhar das migrações e a imagem anémica da CDU continuará a potenciar a fuga do eleitorado conservador. Externamente, a par dos desafios do “Grupo de Visegrado à sua politica de imigração, os seus aliados Hollande e Renzi, que integram o “triângulo virtuoso” que sustenta a atual polícia europeia, poderão ter os dias contados. E, financeiramente, um resgate ao “Deutsche Bank” abalaria a solidez do modelo alemão e, eventualmente do europeu, se fosse acompanhado de uma crise bancária em Itália. Com a sua saída de cena terminará um ciclo político europeu de divisão, crise social, estagnação e relativismo cultural que deixará poucas saudades.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sugerir correcção
Comentar