Muros do mundo: as demagogias e a sensatez

Comparar tudo ao Muro de Berlim é ignorar a complexidade do mundo.

A periódica comemoração da queda do Muro de Berlim costuma suscitar uma vaga de comentários, quer sobre esse muro em concreto quer sobre diversos “muros” que se erguem no mundo atual e que são linearmente comparados àquela parede na Alemanha. Essa comparação é simplista porque a realidade é muitíssimo mais complexa do que poderá parecer. É importante ter a coragem de evitar demagogias. Manter a sensatez é sempre fundamental, mesmo quando tal exija a coragem de chamar a atenção para questões que muitos temem genuinamente abordar.

O Muro de Berlim ergueu-se durante quase três décadas e tornou-se num símbolo da Guerra Fria e do mais vasto conceito da Cortina de Ferro que separava a Europa Ocidental da Oriental. A Cortina de Ferro era uma realidade geograficamente muito vasta, mas o facto de o Muro de Berlim ser muito mais localizado, separando e isolando Berlim Ocidental de Berlim Oriental e da Alemanha Oriental, conferiu a esta parede uma visibilidade forte, mediática e altamente simbólica. Contudo, extrapolar os significados do Muro de Berlim a outras separações existentes na atualidade exige uma criteriosa avaliação, caso a caso.

Por exemplo, foram apresentadas comparações com os muros que, na Irlanda do Norte, separam uma comunidade protestante de uma comunidade católica. A comparação com Berlim é absurda. O Muro de Berlim foi erigido por desumanas imposições políticas, dividindo uma população homogénea e unida, inclusive separando famílias. Mas na Irlanda do Norte os muros existem por vontade e por pressão das populações, para se sentirem reciprocamente protegidas do ódio e dos ataques da comunidade antagonista. Aqui o muro não é imposto por regimes; é exigido pelas duas comunidades, que se sentem mais seguras se estiverem separadas. Naturalmente é triste que, na Europa do séc. XXI, persistam ódios tão primários, que demorarão décadas a desaparecer. Mas esta é a realidade, que em nada se assemelha aos objetivos do odioso Muro de Berlim.

Outro caso que tem sido objeto de errada comparação com o Muro de Berlim é o de Chipre e da sua capital Nicósia, onde uma linha (que só em pequenos trechos é um muro) tem separado as comunidades cipriota grega e cipriota turca. Conheço este caso particularmente bem e este é um dos casos em que tive envolvimentos em fases da mediação dos conflitos.

Numa ilha com duas comunidades carregadas de ódio ancestral e envolvidas num louco genocídio recíproco, tropas externas viram-se obrigadas a separar fisicamente essas duas comunidades entre si, como única forma de garantir a segurança de ambas. Pôr cobro a um momento de selvática agressão entre cipriotas turcos e cipriotas gregos exigia a imediata separação entre as duas comunidades carregadas de sede de violência. Assim se criou uma linha divisória em Chipre. Nas décadas seguintes o ódio entre as comunidades cipriotas diminuiu lentamente mas não desapareceu. Por isso o “muro de separação” existe ainda hoje, provavelmente já por pouco tempo. Mas, tal como na Irlanda do Norte, comparar este “muro” ao de Berlim é uma aberração, porque neste caso a divisão foi criada para separar e proteger entre si duas comunidades que se massacravam num clima de ódio. Em Berlim sucedeu o oposto. Uma comunidade unida e pacífica foi separada por jogos de grandes potências.

“Muros” como a zona desmilitarizada entre as Coreias são monumentos de estupidez humana. Mas, embora se procure reunificar as Coreias, só quem desconhece a situação no local ignora que a eliminação repentina da divisão criaria convulsões gravíssimas e massivos dramas humanos muitíssimo piores.

Seria surreal que, quando se mencionam os “muros do mundo”, se tivessem em mente apenas os muros no seu sentido visual clássico de metal ou cimento. O que interessa é avaliar o que leva os homens a estabelecer barreiras físicas entre si. É pouco relevante que se trate de um muro, arame farpado, um posto fronteiriço em terra, num porto ou num aeroporto, uma costa marítima policiada ou uma faixa minada. Concentrar as nossas atenções nos muros de betão é redutor e ingénuo.

“Muro” é também, por exemplo, o impedimento de entrada de imigrantes, por processos como policiar o mar, prender e repatriar pessoas miseráveis que arriscaram tudo o que tinham para tentar entrar num país menos pobre. No entanto, quantos portugueses terão coragem para defender imediatamente a livre entrada de quaisquer imigrantes do mundo? Ou só nos agitam a consciência os que chegam da Síria? Imagine-se que amanhã Portugal informa o mundo que eliminou todos os muros e impedimentos à entrada de imigrantes, numa demonstração de como se assume a autoridade moral (real, não apenas discursiva) de um mundo ideal sem muros, nem fronteiras, nem controlos, com liberdade absoluta e universal de entrada. Num mundo com uns cinco mil milhões de pessoas bem mais pobres que os portugueses, perante essa notícia provavelmente dezenas de milhões de pobres cidadãos do mundo preparariam o seu caminho para o pequeno Portugal de dez milhões. Como iríamos gerir essa situação, com um impacto interno inimaginável, não instantaneamente mas durante décadas?

Por exemplo, existe um muro entre os Estados Unidos e o México, que muitos criticam e que me choca, particularmente na visão assustadora e brutal de Trump. Contudo, todos os norte-americanos e mexicanos sabem que existe um tácito fechar de olhos a alguma dimensão da entrada de imigrantes ilegais que vivem nos Estados Unidos, que se elevam a 11 milhões, dos quais 5,6 milhões são mexicanos. No entanto, uma sondagem revelou que, se os norte-americanos deixassem entrar livremente imigrantes mexicanos, 46% da população do México (que tem 125 milhões) mudar-se-ia para os Estados Unidos, onde seria impossível acolhê-los sem um colapso quase geral. Seria isto pensável? É óbvio que não. Portugal não possui um “muro” de tijolo para impedir a entrada de cidadãos do Norte de África mas tem o mar como barreira e forças policiais marítimas que intersectam mesmo um barco com dez magrebinos. Como seria se fossem cinco milhões a entrar nas praias do Algarve e a progredir por todo o país? Onde habitariam, com que recursos? Quem pagaria? O que aconteceria às infraestruturas portuguesas incapazes de suportar uma situação de caos e de absoluta rutura funcional? E, em situação de rutura, como acabariam por reagir os portugueses, mesmo os mais puristas acusadores dos muros do mundo? A instabilidade social, o conflito, a violência generalizada, o ódio e um maior desastre humanitário seriam uma questão de tempo.

Sou um férreo globalista, que vê o mundo acima das fronteiras e sem elas. Mas, mesmo que possamos tender para um desejável mundo sem barreiras físicas, serão necessárias gerações para que isso seja totalmente exequível. Devemos caminhar nesse sentido. Mas, como em tudo, devemos fazê-lo com honestidade, sem demagogias e com sensatez. Ser honesto e sensato exige coragem num mundo de “ideias feitas”. Mas só com coragem e sensatez se muda verdadeiramente o mundo.

Comparar tudo ao Muro de Berlim é ignorar a complexidade do mundo.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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