Angola, apontamentos necessários ao futuro

O passado angolano, dos tempos coloniais ao domínio do MPLA, está a ser discutido em livros. E ainda bem.

Parece de propósito mas não é. No mesmo Verão em que os angolanos foram às urnas, dando ao MPLA uma maioria mais curta do que os seus dirigentes desejavam, foram lançados em Portugal mais alguns livros essenciais ao futuro de Angola, porque assentam no seu passado. Comecemos pelo há muito esperado livro de memórias de Hugo Azancot de Menezes, médico e co-fundador do MPLA: Percursos da Luta de libertação Nacional – Viagem ao Interior do MPLA, Memórias Pessoais (ed. Nova Vega). Com organização, fixação de texto, notas e comentários do historiador angolano Carlos Pacheco, o livro é uma narração, na primeira pessoa, das vivências de Azancot, primeiro no confronto com a discriminação racial, depois com as atribulações dos combates pela independência de Angola. Logo nas primeiras páginas, ele exemplifica o primeiro caso com o seu próprio irmão, Óscar. No liceu, ao manifestar uma opinião a colegas, ouviu: “Tu, cala-te, porque és preto.” Mais tarde, formado em Agronomia, candidatou-se a uma vaga de docente no sul de Angola. Tinha o melhor currículo, mas não foi aceite. “É o melhor candidato, sem dúvida, mas é preto…” “E tanto se arrastou a discussão”, diz Azancot, “que o concurso acabou por ser anulado.”

Das escolas às missões, do dia-a-dia em Angola até aos alvores (e dissabores) da famosa Casa dos Estudantes do Império e à fundação do MPLA, Azancot leva-nos a percorrer o caminho que conduziu depois aos movimentos de libertação, à guerrilha interna, à resistência no exterior e, já no MPLA, a situações que muito o entristeceram: exageros de propaganda, violências, abusos de poder, crimes. Que ele explicita com desassombro em muitos exemplos e atitudes. Já na segunda metade do livro (pág. 208), Azancot escreve: “Sobre o reinado de Neto caiu um pano negro de prepotências e de espezinhamento dos direitos mais elementares do cidadão; direitos pelos quais tantos se bateram e empenharam a sua vida em defesa da luta de emancipação nacional. Slogans e cantos revolucionários bem ritmados foram abafando gradualmente os gritos das vítimas inocentes e serviram de cortina de fumo e de música de fundo a uma incrível onda de repressão, cega, sádica e sanguinária que se abateu sobre Angola.” Ainda que não culpasse Agostinho Neto directamente por tais desmandos (“Ergue-te do mausoléu e aponta os criminosos que mataram e roubaram em teu nome. Quem foram?”, escreve Azancot), o autor sofreu demasiado com tudo isto, com a desumanização forçada a que assistiu. Com notas, abundantes e detalhadíssimas, de Carlos Pacheco, o livro fica como um testemunho essencial para repensar Angola e o MPLA.

O segundo é um “ensaio de biografia política”: O Cónego Manuel das Neves, Um Nacionalista Angolano (também da Nova Vega). O seu autor, José Manuel da Silveira Lopes, licenciado em história, enquadra a vida deste “sacerdote católico, mestiço, natural de Angola” no processo que viria a ditar o seu futuro: o fervor nacionalista, a inspiração do 4 de Fevereiro, a prisão no Aljube e os interrogatórios da PIDE e, por fim, o desterro em Portugal em residência fixa, por imposição do regime de Salazar, residência onde viria a morrer aos 70 anos, em 1966. Por aqui passam, também, importantes momentos da história da Angola colonial, que o livro ajuda a fixar e preservar.

O terceiro, e último, é O Fim da Extrema-Esquerda em Angola, subintitulado Como o MPLA Dizimou os Comités Amílcar Cabral e a OCA (1974-1980), da jornalista Leonor Figueiredo (ed. Guerra & Paz). Trata do confronto entre radicais angolanos e a ortodoxia do MPLA, confronto que assumiu proporções sanguinárias, com torturas, espancamentos e fuzilamentos. “Um rapaz negro, enrolado sobre si próprio, colado ao chão que mais parece um charco de sangue. O rosto adivinhava-se por entre as feridas, o sangue e os dentes partidos.” (pág. 192) Isto não foi num interrogatório da PIDE, foi numa prisão do MPLA. E há muitos mais exemplos; sob o tal “pano negro” que tanto indignava Azancot. Importa divulgar tais horrores, para que não se repitam.

NOTA: Por lapso, no texto original desta crónica não foi incluído um outro livro que, lançado no mesmo período, se inclui nesta mesma lógica histórica. Trata-se de Joaquim Pinto de Andrade: Uma Quase Autobiografia, da jornalista Diana Andringa em co-autoria com a viúva do biografado nacionalista angolano, Victória de Almeida Sousa (1936-2015), que faleceu dois anos antes do lançamento. O livro, editado pela Afrontamento, com posfácio de Mário Brochado Coelho, foi lançado no dia 8 de Junho, na Feira do Livro de Lisboa, com a presença da autora e de familiares de Joaquim Pinto de Andrade (1926-2008). A apresentação esteve a cargo de Adolfo Maria, ex-dirigente do MPLA, hoje exilado em Portugal, e do escritor angolano Ondjaki. Aqui fica a justa citação e rectificação.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários