A Turquia pode estar a dar um enorme passo atrás em direitos humanos

Sob a agitação nas ruas de Istambul há um silêncio arrepiante.

É hora de ponta na Ponte do Bósforo, em Istambul. Filas de carros lutam entre si para circular, o barulho das buzinas enche o ar, um homem jovem serpenteia pelo trânsito a vender bandeiras turcas, carregando dezenas de peças de tecido esvoaçantes, vermelhas e brasonadas com o crescente e a estrela simbólicos do país.

Perante tal cenário de agitação citadina, é difícil acreditar que há apenas uma semana esta mesma ponte foi palco de uma brutal carnificina. É este o local onde soldados fortemente armados e tanques tomaram posição, e os habitantes de Istambul perceberam que estava em curso um golpe militar.

Apesar de uma aparência de normalidade ter regressado às ruas de Istambul, não há dúvida nenhuma de que os seus cidadãos vivem agora num mundo muito diferente daquele em que estavam na semana passada.

Nos últimos sete dias, cerca de 60 mil trabalhadores do Estado – funcionários públicos, juízes, polícias e académicos – foram afastados ou suspensos de funções. Mais de dez mil pessoas foram detidas, tanto em locais oficiais como não oficiais, e existem denúncias de práticas generalizadas de maus-tratos. Dezenas de órgãos de comunicação social e jornalistas viram as suas licenças e carteiras profissionais revogadas.

A repressão tem proporções extraordinárias, segundo quaisquer padrões, e a uma escala nunca vista na Turquia desde os dias negros da ditadura militar dos anos de 1980. As purgas e as operações de detenção em curso estendem-se, claramente, muito para além daqueles que são directamente responsáveis pelos crimes cometidos na semana passada durante a tentativa de golpe. E assiste-se a preocupantes sinais de que isto é apenas o princípio.

Na noite de 20 de julho, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, declarou o estado de emergência durante pelo menos três meses, entregando nas mãos do primeiro-ministro e do Governo o poder de governarem por decreto, sobrepondo-se ao Parlamento. E no dia seguinte, porta-voz do Governo anunciou que a Turquia restringia formalmente alguns dos direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O Presidente Erdogan tem afirmado repetidas vezes, perante multidões que gritam em êxtase com desejos de vingança, que está preparado para repor a pena de morte no país.

Sente-se um alívio esmagador nos habitantes de Istambul por o golpe ter falhado, mas as acções do Governo nesta última semana criaram novos medos na população. Criticar a conduta do Governo ou reprovar as violações de direitos que estão a ocorrer carrega o risco de se ser rotulado pró-golpe. E esse é um rótulo muito perigoso em tempos de paixões exacerbadas, de detenções maciças, de suspensões, e de encerramento de instituições de ensino e jornalísticas.

Ao longo da última semana, a Amnistia Internacional tem mantido uma equipa de investigação no terreno em Istambul, na tentativa de apurar a extensão das violações de direitos humanos que têm acontecido, a começar pelo que ocorreu na Ponte do Bósforo e em outras zonas da Turquia na Sexta-feira da tentativa de golpe. Afinal de contas, perderam-se 265 vidas e centenas de outras pessoas foram feridas antes de a ordem ser reposta e o golpe derrotado; alguns dos que foram mortos receberam o rótulo de “golpistas”.

Há imagens a circular que mostram os “golpistas” a serem espancados ou mesmo mortos, aparentemente vítimas de linchamentos por multidões e de violência às mãos de outros cidadãos. Isto aconteceu na presença de polícias. E testemunhas desses incidentes estão, em muitos casos, com medo demais para falarem.

Estavam pelo menos dois jornalistas a reportar os acontecimentos na Ponte do Bósforo, noticiando os confrontos entre as multidões e os soldados que tomaram o controlo da ponte na fase inicial da tentativa de golpe. Há relatos que indicam que pelo menos um dos jornalistas foi morto por disparos dos militares; o outro foi brutalmente espancado por uma multidão em fúria.

Muitos jornalistas com os quais tentámos falar sobre as acções do Governo para extinguir e responder ao golpe estavam aterrorizados. Um descreveu-nos que o discurso de ódio circula abundantemente nas redes sociais e que teme represálias tanto das autoridades como de apoiantes do Governo caso revele o que pensa.

O mesmo nos foi expresso por advogados, médicos e familiares dos detidos. O medo destas pessoas é palpável e subsequentemente há toda uma narrativa dos acontecimentos da noite de Sexta-feira, e da repressão do Governo que se lhe seguiu, que está em falta. Quem foi morto e quem ficou ferido? Quem é responsável por essas mortes e como é que elas aconteceram?

O Presidente Erdogan sustenta que a democracia saiu vitoriosa na Turquia, mas as medidas repressivas do Governo ao longo desta semana estão a pôr em risco do Estado de direito, as protecções de direitos humanos e uma sociedade civil vibrante – incluindo uma imprensa livre que possa fiscalizar e criticar a conduta governamental.

O Governo turco colocou-se numa rota perigosa; as escolhas que fará nas próximas semanas e dias são cruciais para definir se o legado do golpe militar falhado é uma afirmação do primado do Estado de direito e dos direitos humanos ou um retorno aos dias negros da repressão maciça, da tortura e das detenções arbitrárias.

Katy Pownall integra a missão de investigação da Amnistia Internacional em curso na Turquia

Sugerir correcção
Ler 1 comentários