A Estratégia Global da União Europeia pós-Brexit: um documento chamado desaire?

A apresentação extemporânea da ‘Estratégia Global’ parece corporizar, ao mais alto nível institucional europeu, o sentimento de ‘enfin seuls’. Finalmente sós.

Foi com estupefacção que tomei conhecimento da apresentação da ‘Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da União Europeia’ pela Alta Representante para a Política Externa e de Segurança (ARPES), Federica Mogherini, por ocasião da Cimeira de Bruxelas realizada no passado dia 28 de Junho. Desde o início do ano que aguardava a divulgação desse novo documento estratégico da União Europeia (UE), concebido para nortear a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), assim como a Política de Segurança e Defesa (PCSD), em substituição da ‘Estratégia Europeia de Segurança’, aprovada em 2003, e do ‘Relatório sobre a Implementação da Estratégia Europeia de Segurança’, sancionado em 2008. Tal substituição era considerada imperiosa pelo entendimento de que esses dois documentos - ajustados às realidades e desafios gerados pelo pós-11 de Setembro de 2001 - tinham deixado de espelhar as preocupações de segurança resultantes das transformações ocorridas no ambiente estratégico europeu na sequência da crise na Ucrânia e, muito especialmente, da anexação da Crimeia.

A divulgação da ‘Estratégia Global’ era expectável no mês de Junho, em data posterior à realização do referendo britânico, em relação ao qual se previa um resultado positivo. De resto, a própria redacção do documento foi condicionada pelo medo do "Brexit", que intensificou a necessidade de não ferir as susceptibilidades britânicas em matéria de segurança e defesa europeia. No essencial, tais susceptibilidades compaginam-se com uma dupla preocupação: salvaguardar a soberania dos Estados no que toca à formulação e implementação de uma política de segurança e defesa nacional; e garantir o primado da NATO no quadro da arquitectura de segurança europeia. A utilização da expressão ‘cooperação’ (em detrimento de ‘integração’) em todas as referências associadas à defesa europeia, em nome da soberania estatal que é mencionada 3 vezes no texto, e o assento tónico colocado na complementaridade e sinergia entre a UE e a NATO, descrita como “a mais forte e eficaz aliança militar no mundo”, são claros exemplos da influência do condicionalismo britânico.

Face ao resultado do referendo britânicos favorável à saída do Reino Unido da UE era mais do que compreensível e justificável que o ‘timing’ da divulgação do documento fosse reconsiderado pelos mais altos responsáveis políticos europeus - com a ARPES e Vice-Presidente da Comissão Europeia no topo da lista -, por imperativo de ponderação política sobre um acontecimento desestruturante, sem precedentes nos anais do processo de integração europeia. Não foi esse o entendimento daqueles responsáveis que, num indisfarçável sinal de assertividade político-diplomática, através do qual terão procurado transmitir, em desespero de causa, um senso de normalidade, apoiaram a apresentação ‘urbi e orbi’ da ‘Estratégia Global’, 5 dias após 52% dos britânicos ter votado a favor da saída do Reino Unido da UE. Tratou-se de um ‘timing’ desarrazoado, por meio da qual a UE tentou disfarçar a sua imensa incredulidade e desilusão com o desfecho do referendo britânico, para o qual não estava preparada, nem tinha plano B. Daí o apoio embotado à divulgação de um documento que (exceptuando uma brevíssima alusão feita ao referendo britânico no seu prefácio) faz ‘tabula rasa’ do "Brexit" e das suas implicações para a PESC e PCSD.

De facto, é irónico constatar que o novo documento estratégico preconiza, de forma categórica, a afirmação da UE como provisor da segurança global no preciso momento em que esta se confronta com a saída da potência global mais relevante em termos militares, se pensarmos nos seus gastos no sector da defesa, na robustez das suas Forças Armadas, na sua relação especial com os EUA, e no seu envolvimento na fundação e evolução da NATO durante a Guerra Fria, bem como na reinvenção da Aliança Atlântica no período entre 1989 e 2009. A França não reúne estes pergaminhos e a Alemanha, parafraseando Henry Kissinger, apesar de ser grande para e na Europa, continua a ser um pequeno Estado para o Mundo.

‘E, igualmente, irónico verificar que a ‘Estratégia Global’, cuja concepção foi motivada pela urgência de incrementar a autonomia e credibilidade da PCSD é apresentada numa altura em que a UE se depara com a saída do país que (juntamente com a França) não só tornou possível o estabelecimento dessa política comum, como desempenhou um papel-chave na sua institucionalização e implementação nos últimos 15 anos. A concretização do "Brexit" trará consigo a dissociação do Reino Unido da PESC e da PCSD, sendo certo que o peso e status internacionais deste Estado-membro sempre foram cruciais na capacitação (militar e civil) da UE para responder ao extenso e complexo rol de ameaças à segurança europeia. Um efeito inevitável dessa dissociação será a emergência de um potencialmente perigoso vazio de poder no seio da PCSD que a França e a Alemanha procurarão colmatar dentro das suas visões, nem sempre sincronizadas, sobre o tipo de protagonismo internacional que a UE pós-"Brexit" deverá perfilhar enquanto actor político e de segurança.

A apresentação extemporânea da ‘Estratégia Global’ parece corporizar, ao mais alto nível institucional europeu, o sentimento de ‘enfin seuls’. Finalmente sós, para desenvolver uma componente de segurança e defesa europeia à altura da ambição de alguns visionários que almejam ver a UE desempenhar um papel de relevo incontestável nas relações internacionais hodiernas. Isso poderia ser plausível se a UE, qual ‘Alice’, vivesse no País das Maravilhas, isto é, em tempos de paz, segurança e prosperidade - o que não é de todo o caso.

No horizonte da saída do Reino Unido do projecto europeu, a UE está exangue de credibilidade e legitimidade aos olhos de milhões de cidadãos europeus, ao passo que se tornou numa região ferida de insegurança face ao elevado risco de ataques terroristas. Além disso, transformou-se numa casa profundamente dividida entre aqueles que defendem a virtude da austeridade e os que pleiteiam pelo crescimento económico; entre aqueles que pugnam pelo fecho das fronteiras aos refugiados e os que buscam fórmulas construtivas para gerir o seu influxo por razões humanitárias; em última análise, entre aqueles que se empenham pela preservação do processo da integração europeia e os que advogam a sua derradeira extinção.

Por tudo isto, quando, no rescaldo imediato do "Brexit", li a ‘Estratégia Global’, pomposamente intitulada ‘Visão Partilhada, Acção Comum: Uma Europa Mais Forte’, tive vontade de sussurrar ao ouvido da Senhora Federica Mogherini: ‘Wake up and drink some coffee, please!’

Professora de Relações Internacionais da Universidade do Minho

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