A deriva islamista da Turquia

O governo da Turquia, que continua a afirmar o seu comprometimento com a adesão à União Europeia, tem muitos e preocupantes problemas a enfrentar.

1. A construção secularista da República da Turquia está em processo de reversão, o que já não é novidade para ninguém. Na superficialidade, os rituais do Estado fundado por Mustafa Kemal Atatürk, sucessor do Império Otomano em 1923, ainda se mantêm. Talvez não por muito tempo. A realidade do seu funcionamento é hoje substancialmente diferente. Para além disso — e mais preocupante ainda —, os valores democráticos e liberdades fundamentais estão, cada vez mais, sob tensão e ameaça de reversão. Numa democracia parlamentar, onde o Presidente da República é eleito indirectamente, ou seja, pelo Parlamento, é suposto afastar-se da actividade partidária e procurar representar o conjunto dos cidadãos do país. O poder executivo e o protagonismo político ficam essencialmente para o Primeiro-Ministro. Na actual Turquia não é isso que ocorre. Recep Tayyip Erdogan, o Presidente da República, é quem, à margem dos mecanismos constitucionalmente estabelecidos, detém o poder efectivo. Continua, na prática, a ser o líder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), teoricamente chefiado por Binali Yildirim, e a definir o seu rumo político. Os primeiros-ministros entram e saem do governo conforme as suas conveniências políticas. Recentemente, Ahmet Davutoglu demitiu-se, ou, talvez mais realisticamente, tenha sido pressionado para se demitir, para dar lugar a Binali Yildirim, um aliado de longa data.

2. Para os mais atentos à trajectória da Turquia dos últimos anos nada disto é surpresa. A concepção de democracia e de direitos humanos de Recep Tayyip Erdogan sempre foi bastante sui generis, quando aferida pelo sentido que usualmente essas palavras têm na Europa e Ocidente. Assenta, essencialmente, num catálogo de virtudes islâmicas, matizadas por algumas ideias seculares, e na ideia de um povo orgulhoso do seu passado imperial otomano, guiado por um líder forte. Ironicamente, nunca escondeu isso, apesar da ingenuidade dos que, na Europa e Ocidente, achavam ter a Turquia encontrado um grande líder democrático, libertado do passado e empenhado em prosseguir os valores europeus. Iria transformar o país numa moderna democracia pluralista à europeia e respeitar as minorias e os direitos humanos. O Partido da Justiça e Desenvolvimento era a versão islâmica dos partidos democratas-cristãos. Um centro-direita de tipo europeísta, facilmente encaixável na lógica do Partido Popular Europeu (PPE). Provavelmente, nunca prestaram muita atenção à sua ideologia e declarações políticas. Menos ainda à sua hábil estratégia, a qual se mostra extremamente bem-sucedida na conquista do poder e controlo do Estado. Com os europeus a ajudarem no feito, pela sua incapacidade de a perceberem atempadamente. A adesão à União Europeia sempre foi instrumental e usada para bloquear os inimigos internos.

3. Em finais de 2009, Recep Tayyip Erdogan dizia nas vésperas de uma cimeira da Organização da Conferência Islâmica em Istambul: “Não é possível, para aqueles que pertencem à fé muçulmana, cometer genocídio”. (Ver Seth Freedman “Erdogan's blind faith in Muslims” in Guardian, 11/11/2009). O contexto era o da acusação, feita pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), ao Presidente do Sudão, Omar al-Bashir. Cabe notar que nesse conflito, que afecta gravemente as populações não árabes-islâmicas do Darfur, os ataques das forças governamentais e milícias tribais pró-governamentais já terão vitimado mais de 400.000 pessoas. Não importa: Omar al-Bashir, como muçulmano, nunca poderia ser culpado pelos crimes pelos quais foi indigitado pelo TPI. A ideia de um ser humano, com similares virtudes e defeitos e a mesma dignidade, que transcende fronteiras e convicções religiosas, fundamental para a integração europeia, aparentemente é-lhe estranha. Mesmo descontando exageros de retórica política, que um Primeiro-Ministro de um país candidato fizesse tais afirmações, já dava que pensar. Estranhamente, não houve qualquer reacção negativa da União Europeia. O problema hoje é mais grave. As recentes negociações e concessões à Turquia, para a deportação de refugiados / migrantes da Síria e Médio Oriente entrados ilegalmente na União Europeia, são mais um passo na erosão dos valores humanistas europeus.

4. Com este quadro mental, naturalmente que o massacre dos arménios otomanos, que são cristãos, nunca poderia ter acontecido. Afinal, um muçulmano, presumivelmente devido à proibição da lei islâmica, não pode cometer genocídios. Infelizmente, esquece que o melhor e pior do ser humano, transcendem os princípios de uma particular religião e que nenhuma está isenta dos seus impulsos mais destrutivos. A versão oficial da historiografia turca, mais por razões de orgulho nacionalista, também não ajuda nada o país a reconciliar-se com o seu passado. Para esta, a deportação das populações arménias em 1915 era totalmente justificável pelo “terror arménio.” A medida do governo otomano da época, tomada por Talât, o Ministro do Interior, que decidiu deportar a generalidade da população arménia para as províncias otomanas da Mesopotâmia e da Síria, especialmente para a região de Zor, no deserto da Síria, é apresentado como uma espécie operação humanitária. “Deslocar milhares de pessoas repentinamente e realojá-las não é tarefa fácil. Todavia, o planeamento antecipado dos percursos e das áreas de paragem, o amplo uso das estações de caminho de ferro e dos centros de despacho, o uso de comboios para transporte da maior parte dos deportados, a distribuição de rações pelo Estado, a assistência de pessoal médico e de gendarmes nos pontos de partida, transformou a deportação no mais ordeiro movimento de população do século passado. Claro que durante a deportação, ocasionalmente grupos em movimento ficaram sob ataque de pessoas vingativas e cerca de 9.000 a 10.000 foram massacrados”. (Ver Yusuf Halaçoglu, “Realities Behind the Relocation” in Türkkaya Ataöv [ed.] The Armenians in the Late Ottoman Period, 2ª ed., Ankara, The Council of Culture, Arts and Publications of the Grand National Assembly, 2001, p. 140).

5. Em 2 de Junho último, o reconhecimento politico do genocídio dos arménios otomanos em 1915 foi aprovado pela câmara baixa do Parlamento alemão, o Bundestag. A decisão é corajosa e tem particular valor político e simbólico. Os alemães foram aliados do Império Otomano durante a I Guerra Mundial. No entanto, convenientemente, a chanceler Angela Merkel, o vice-chanceler e líder do SPD, Sigmar Gabriel, e o ministro dos negócios estrangeiros, Frank-Walter Steinmeier, não puderam estar presentes. Tinham compromissos inadiáveis. Na realidade, estavam com medo que a Turquia denunciasse o acordo sobre os refugiados. (Ver “Bundestag passes Armenia 'genocide' resolution unanimously, Turkey recalls ambassador" in Deutsche Welle, 2/06/2016). Para além da usual reacção de reiterar a negação do genocídio e retaliação diplomática, Recep Tayyip Erdogan acusou “um grupo na Alemanha de conspirar contra a Turquia”. (Ver “A group in Germany conspiring against Turkey, says Erdogan”, in Hürriyet Daily News, 4/06,2016). A afirmação mostra como procura influenciar a opinião pública através de supostas conspirações. Esta mentalidade, que alimenta versões sem fundamento sobre os arménios do Império Otomano e encobre os massacres sob uma “cortina de silêncio”, tem ainda uma outra faceta. Há uma peculiar concepção de crimes contra a humanidade: deixar-se assimilar pela cultura alemã, isso é um “crime contra a humanidade.” (Ver “Erdogan visit polarizes Germany's Turks” in Deutsche Welle, 20/05/2014). A frase foi proferida em inícios de 2008, numa visita à Alemanha, durante um discurso em Colónia para cerca de 20.000 turcos. Recep Tayyip Erdogan, mantém-se hoje igual a si próprio. Bastava prestar atenção ao que dizia há alguns anos atrás e à sua hábil estratégia de consolidação do poder.

6. O governo da Turquia, que continua a afirmar o seu comprometimento com a adesão à União Europeia, tem muitos e preocupantes problemas a enfrentar. Apesar do seu simbolismo, a negação dos massacres dos arménios otomanos de 1915 nem sequer é dos mais graves. A este “lapso de memória” acrescem o não respeito pelas minorias — especialmente dos curdos —, o desvio face aos direitos humanos e à liberdade de expressão e a tentação de transformar a Constituição num sistema presidencialista à medida de Recep Tayyip Erdogan. A tarefa dos que se opõem a esta deriva islamista e autoritária, é cada vez mais difícil e sujeita a forte pressão, incluindo a intimidação psicológica e física. Num dos mais recentes episódios, dois jornalistas do principal diário da oposição, o Cumhuriyet (A República), foram condenados a mais de cinco anos de prisão. Motivo da condenação: revelarem que os serviços secretos enviavam armas e munições para os rebeldes do Daesh e afins, na Síria. O objectivo, não assumido oficialmente, é que os islamistas-jihadistas façam o trabalho sujo no terreno, contra os curdos e as forças de Bashar al-Assad. No Leste da Turquia, o ambiente é de quase guerra civil com a população curda. Estes, por sua vez, levam a violência às grandes cidades turcas, com atentados terroristas contra as forças de segurança. Intelectuais turcos como Orhan Pamuk, Taner Akçam, Halil Berktay e Elif Shafak — que, corajosamente, reconhecem o genocídio arménio —, denunciam a actual deriva islamista e autoritária. Mas só têm possibilidade de o fazer livremente no exterior. As palavras de Elif Shafak numa entrevista ao Al-Monitor (“Turkey is a country of collective amnesia”, 14/01/2014), captam a essência da problema: “sociedades que têm um registo fraco em matéria de democracia tendem a ser sociedades com amnésia colectiva. A Turquia é um país de amnésia colectiva.”

Investigador

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