Chama-se Nkisi e tanto atrai os maus espíritos como ofertas milionárias. Mas Faro não vende

Um antigo governador civil de Faro, coronel, foi o benemérito que ofereceu ao museu a estátua, pejada de pregos, que dizem atrair os espíritos maus

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A estátua tem quase um metro de altura Bruno Filipe Pires/ jornal BARLAVENTO

A galeria britânica Entwistle, especializada em arte africana, ofereceu 2 milhões de euros por uma obra que se encontrava na reserva do museu municipal de Faro. A câmara, por unanimidade, rejeitou a proposta. “Sabíamos que seria valiosa, mas não tínhamos uma referência”, diz o vice-presidente do município, Paulo Santos, adiantando que a partir de agora “vai ter de ser actualizado o valor do seguro que cobre o acervo do museu”. A peça de arte africana “NKisi NKondi” foi oferecida ao museu, em 1917, pelo coronel João de Sousa Viegas, que teria estado na fronteira do Congo, onde recolheu a estátua a que os nativos atribuíam poderes sobrenaturais relacionados com feitiçaria e espiritualidade.

Com o interesse vindo de Londres, no passado mês de Agosto, soaram as campainhas dos poderes públicos em relação a uma obra a que a cidade não atribuía particular valor. Na segunda-feira, o Partido Socialista, a poucas horas do início da reunião de câmara, acusou o executivo autárquico, do PSD, de estar a tentar “delapidar os bens culturais dos farenses”, procurando uma possível alienação da Nkisi para reabilitar o museu com o dinheiro da venda. Paulo Santos, em declarações ao PÚBLICO, desvalorizou a crítica: “Não passou de um fait-divers porque a questão da venda nunca foi equacionada”, diz, referindo-se ao comunicado de imprensa da oposição. Pelo contrário, acrescenta, “vamos procurar dar-lhe a projecção pública que merece”.

Nesta terça-feira, ao final do dia, o PS voltava à carga, denunciando que a proposta inicial assinada por Paulo Santos, apresentada a votação, sugeria que o montante resultante da transacção “seria investido na íntegra no museu e noutros equipamentos culturais”. A justificação: “A cidade de Faro não possui relação especial com esta peça de origem africana”.

Enquanto a nível partidário se esgrimiram argumentos em defesa do património cultural e artístico, o director do museu, Marco Lopes, era solicitado por jornalistas e populares a explicar: Que estátua mágica é esta para valer 2 milhões? “Foi uma correria”, disse, para ver a peça de arte africana que dizem atrair os espíritos maus. A oferta da Entwistle surgiu enquanto decorria em Faro, no Verão, a exposição “Esconjurações na colecção do Millennium BCP e noutras obras de José Guimarães”. A estátua, considerada uma das peças principais do museu, foi o centro das atenções. Tem 93 cm de altura e 46 centímetros de largura. “Impressiona, atrai e rejeita o olhar de quem se aproxima”, assim a descreve Marco Lopes, adiantando que vai preparar para 2017 uma exposição sobre arte africana, tendo esta peça como motivo central. Antes, refere, “é preciso conhecer o contexto da sua descoberta”.

O que se sabe, e há registos, é que chegou até Faro por oferta de um militar chegado de Angola em 1916, que viria a ser nomeado Governador Civil em 1919. De acordo com a investigação levada a cabo pela historiadora Luísa Fernanda Guerreiro Martins, a produção da estátua “situar-se-á algures na segunda metade do século XIX”. Sobre o simbolismo e significado da peça, pejada de pregos, diz, “atrai para si os espíritos maus e guarda-os no seu interior como se fossem sua própria alma”. Segunda a crença, refere a historiadora nos Anais do Município de Faro, a pessoa contra quem se prega o prego ou faca irá morrer gorda ou inchada como um embondeiro. Há outra estátua semelhante à de Faro, informa, no Museu Antropológico da Universidade de Coimbra datada de 1916.

O museu municipal de Faro, situado na zona histórica, regista uma média anual de 30 mil visitantes, tendo vindo a verificar-se um crescimento progressivo com a dinamização do turismo cultural. O espaço expositivo é acanhado e as instalações acusam a degradação do tempo. Em resposta a esta situação, o vice-presidente da Câmara diz esperar pela “aprovação de uma candidatura ao PARU – Plano de Acção para a Regeneração Urbana”, no valor de 1,9 milhões de euros. O plano coloca o museu como peça central da intervenção, conferindo-lhe um novo espaço expositivo nas instalações da antiga carpintaria com 500 metros quadrados.

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