Dados: INE
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Em Portugal trabalham sensivelmente 5 milhões de pessoas. Cada no gráfico representa 5 mil pessoas.
Destas, 32% têm pelo menos uma licenciatura.
Mas ter uma licenciatura não implica necessariamente estar a trabalhar na sua área de formação.
27% dos portugueses com formação superior trabalham abaixo das suas qualificações, mostram os dados do European Labour Survey (EU-LFS), a que o PÚBLICO e um consórcio de jornalistas europeus tiveram acesso em exclusivo.
Já entre os que escolheram imigrar para Portugal, este valor sobe para quase 39%.

Portugal desperdiça talento estrangeiro

Quatro em cada dez imigrantes com formação superior trabalha abaixo das qualificações

Cerca de 40% dos imigrantes com formação superior estão sobrequalificados para as funções que desempenham, valor que desce para 27% no caso dos nascidos em Portugal. Diploma em universidade portuguesa e domínio da língua são determinantes.

Tahir é engenheiro civil formado no Paquistão — mas não consegue ter o diploma reconhecido em Portugal.
Tahir é engenheiro civil formado no Paquistão — mas não consegue ter o diploma reconhecido em Portugal.
Fotografia: Tiago Bernardo Lopes

Tahir começa o dia quando a maioria das pessoas está a terminar. Após uma caminhada de dez minutos até ao supermercado onde faz o turno da noite, passa horas a repor prateleiras e a organizar o inventário. Há três anos, contudo, a vida de Tahir era bem diferente: primeiro no Paquistão e, mais tarde, em Omã e no Dubai, trabalhava como engenheiro civil. O paquistanês é um entre muitos imigrantes altamente qualificados em Portugal cujas competências e experiência permanecem subaproveitadas — um fenómeno conhecido como “desperdício de cérebros” (brain waste, em inglês).

Cerca de 27% dos trabalhadores portugueses com ensino superior estão sobrequalificados para as funções que desempenham, um número que sobe para 39% no caso dos imigrantes. Uma análise do PÚBLICO — em parceria com a Lighthouse Reports, El País, Financial Times e Unbias the News — aos dados do European Labour Force Survey revela que existe uma diferença clara entre os trabalhadores nascidos em Portugal e aqueles que vieram trabalhar para o país. O brain waste afecta desproporcionalmente imigrantes como Tahir.

Imigrantes com estudos universitários mas longe daquilo para que estudaram

Em Portugal, há uma diferença de 13 pontos percentuais entre nativos e imigrantes que trabalham abaixo das suas qualificações. A diferença existe em quase toda a Europa.

De forma a garantir que a população era sempre representativa, optou-se por unir numa só categoria alguns países, como é o caso de Visegrado (República Checa, Hungria, Polónia e Eslováquia).
*Média ponderada pela população de todos os membros da UE (excluindo a Alemanha), bem como da Noruega, Islândia e Suíça.

Dados: European Labour Force Survey - 2017-2022 / Eurostat
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Portugal não está sozinho no desafio de integrar imigrantes qualificados, mas destaca-se positivamente quando comparado com outros países do Sul da Europa. Em Itália, Espanha e Grécia, a diferença é quase o dobro.

Entre os 23 países e grupos de países analisados, a diferença existe em quase toda a Europa, com os imigrantes a verem sistematicamente as suas qualificações subaproveitadas em relação aos naturais desses países.

Portugal, a Europa que integra bem

Diferença entre a percentagem de nativos e imigrantes a trabalhar em algo abaixo das suas qualificações

Dados: European Labour Force Survey - 2017-2022 / Eurostat
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Diferença entre a percentagem de nativos e imigrantes que dizem querer trabalhar mais horas do que aquelas que trabalham

Dados: European Labour Force Survey - 2017-2022 / Eurostat
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Diferença entre a percentagem de nativos e imigrantes desempregados

Dados: European Labour Force Survey - 2017-2022 / Eurostat
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Quando comparamos Portugal com outros países do Sul da Europa, que partilham perfis económicos semelhantes e atraem perfis migratórios comparáveis aos dos portugueses, os dados parecem mostrar que o país, apesar de replicar a disparidade entre quem nasce e quem chega, tem uma das diferenças mais baixas da Europa (os tais 13 p.p.). Além disso, em Portugal, os imigrantes têm uma probabilidade significativamente maior de ter formação superior quando comparados com os portugueses.

No entanto, os números parecem sugerir um sistema baseado na reeducação como forma de ver as qualificações reconhecidas, que exige capacidade financeira que permita ao imigrante passar algum tempo sem trabalhar nas áreas em que é formado para estudar de novo.

O diploma made in Portugal parece ser determinante na entrada no mercado de trabalho — sobretudo para não acabar num trabalho abaixo das qualificações ou, até, no desemprego. Entre os países analisados, apenas a Suécia supera Portugal na diferença entre as taxas de desemprego registadas entre imigrantes que estudaram numa universidade local e os que possuem um diploma estrangeiro.

A diferença acentuada evidencia o valor de um diploma nacional. E o impacto de um diploma português é ainda mais notório no que diz respeito ao desemprego.

Probabilidade de desperdício de cérebros diminui com diploma made in Portugal

Dados: European Labour Force Survey - 2017-2022 / Eurostat
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Quando o foco é a sobrequalificação de imigrantes com estudos em Portugal ou lá fora, a situação é ainda mais extrema. Portugal apresenta a maior disparidade na Europa, com uma diferença de quase 36 pontos percentuais entre um imigrante com um diploma de uma universidade portuguesa e outro com um diploma estrangeiro. A língua também desempenha um papel importante, mas isto significa que os imigrantes formados no estrangeiro têm uma probabilidade significativamente maior de trabalhar em funções muito aquém das suas qualificações.

Dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) mostram que cerca de 12% dos estudantes do ensino superior em Portugal são estrangeiros (excluindo estudantes em programas de mobilidade), com a maioria proveniente de países de língua oficial portuguesa. Embora o número absoluto de estudantes estrangeiros tenha aumentado ao longo dos anos, a percentagem em relação ao total da população estudantil tem diminuído ligeiramente, à medida que Portugal vai atingindo números recorde de inscrições no ensino superior.

Em 2023, Portugal registou 51.088 estudantes estrangeiros, excluindo os de programas de intercâmbio — um número apenas superado por 2022, o mais elevado até à data.

Países lusófonos dominam inscrições de estrangeiros. França é a excepção

Dados: DGEEC
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O país tem vindo a ajustar a legislação para facilitar o acesso de estudantes estrangeiros ao ensino superior. O passo mais significativo foi o Estatuto do Estudante Internacional, introduzido em 2014, que permitiu às instituições criar processos específicos de admissão para estudantes internacionais e cobrar propinas mais altas a alunos estrangeiros — embora ainda dentro de valores controlados. Foi criado um concurso especial para estudantes estrangeiros, dirigido a candidatos de fora da União Europeia. Desde a sua introdução, este regime foi clarificado e simplificado, permitindo, por exemplo, a utilização de exames como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), do Brasil, para ingresso.

O Governo anterior também incentivou as instituições a aumentarem o número de vagas para estudantes estrangeiros. No entanto, cada instituição tem os seus próprios procedimentos de candidatura, dependendo do programa de estudos, o que resulta em diferentes requisitos de admissão, prazos e documentação necessária. Os esforços têm como objectivo atrair estudantes estrangeiros, uma das formas de responder aos desafios demográficos de Portugal, compensando o declínio da população jovem no país.

Aliás, o último balanço, de 2021, mostra que as propinas dos estudantes internacionais representam cerca de 20 milhões de euros anuais para as instituições de ensino superior públicas (cerca de 5% das suas receitas próprias anuais).

Um em cada quatro alunos de mestrado é estrangeiro

Peso relativo dos alunos estrangeiros em licenciaturas, mestrados e doutoramentos em Portugal

Dados: DGEEC
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A proporção de estudantes estrangeiros em relação ao total de estudantes é consistentemente maior nos doutoramentos e mestrados, em comparação com as licenciaturas. Embora estes últimos tenham a menor percentagem de estudantes estrangeiros, representam a maior fatia da população estudantil.

Reconhecimentos? Quais reconhecimentos?

O desperdício de cérebros não se limita a desperdiçar talento — consome a dignidade. Tahir mudou-se para Portugal com a esperança de um futuro melhor para a família. Pensou que uma mudança para a Europa significaria uma melhor qualidade de vida, segurança e boas oportunidades educativas para os dois filhos pequenos. “Imaginamos que a Europa tem um futuro melhor, mas essa não tem sido a minha experiência até agora. Não tenho palavras… Já passaram três anos desde que vi a minha família, a minha mulher, os meus filhos, a minha mãe e o meu pai”, lamenta.

Hoje, Tahir tem sorte se conseguir poupar algum dinheiro no final do mês. Ganha o salário mínimo nacional, quase metade gasto na renda. Milhares de migrantes por todo o país enfrentam uma situação semelhante. Apesar de Tahir pagar mensalmente a segurança social, o processo está pendente até que receba uma marcação para obter o cartão de residência. Imigrantes cujas qualificações académicas são desperdiçadas trabalham mais como assistentes e secretários administrativos, funcionários de limpeza em ambiente doméstico e empresarial, assistentes operacionais e profissionais desportivos.

Enquanto espera, não tem direito a um médico de família, não possui número de utente e não pode iniciar o processo de reconhecimento do seu diploma. Quando chega a casa depois do turno nocturno no supermercado, o dia já está em pleno andamento para o companheiro de quarto, enquanto Tahir tenta dormir algumas horas antes de ir às aulas de português.

De acordo com dados do EU-LFS analisados pelo consórcio de jornalistas, os imigrantes que não têm as qualificações reconhecidas têm uma probabilidade muito mais elevada de trabalhar em empregos abaixo das competências, estar desempregados ou trabalhar menos horas do que desejariam.

Diplomas reconhecidos duplicaram nos últimos quatro anos

Dados: DGES
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A diferença que um diploma com carimbo nacional parece fazer na selecção de um candidato, no entanto, não explica porque é que há imigrantes que não optam pelo processo de reconhecimento de diploma, em vez de se inscreverem numa universidade portuguesa. Uma explicação pode passar pela dificuldade e falta de instruções claras sobre como o processo deve ser realizado.

O reconhecimento de graus e diplomas de ensino superior estrangeiros em Portugal foi padronizado desde 2019, com o objectivo de o tornar “mais transparente, equitativo e simples”, segundo a Direcção-Geral do Ensino Superior (DGES). O enquadramento legal introduziu definições mais claras, incluiu diplomas de ensino superior de curta duração e implementou procedimentos simplificados para reduzir custos e tempos de resposta.

O processo também concedeu autonomia às instituições para decidir casos individuais, uma vez que não existe um organismo centralizado responsável por supervisionar estes procedimentos — os imigrantes devem contactar directamente a instituição da qual pretendem obter o reconhecimento.

Manuel Heitor, ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e responsável por algumas das mudanças, destaca ao consórcio essa simplificação e a completa descentralização do processo de reconhecimento para as instituições de ensino superior. Ressalva, no entanto, que, embora sejam sempre possíveis mais simplificações, tal não pode ser feito de um dia para o outro e tem de ter o envolvimento de “peritos das próprias instituições”.

Existem três tipos de reconhecimento: o automático, aplicado a graus considerados equivalentes a diplomas ou graus portugueses, principalmente de países europeus; o reconhecimento por nível, que avalia caso a caso se um diploma estrangeiro corresponde a um grau português; e o reconhecimento específico, que envolve uma análise detalhada do nível, duração e conteúdo programático do curso para verificar se corresponde a um diploma português numa área específica.

Desde a implementação destas mudanças, 26.826 diplomas foram reconhecidos até Outubro de 2023, sendo mais de metade destes reconhecimentos automáticos.

No entanto, e apesar destes esforços para simplificar e agilizar o processo, os imigrantes relatam frequentemente dificuldades em navegar pelo sistema de reconhecimento.

Manuel Heitor não concorda com a ideia de que o país se deva preocupar em demasia com a questão. O ex-ministro considera que Portugal se posicionou na Europa como "um excelente caso de acolhimento e integração" de imigrantes, tanto no ensino superior como no mercado de trabalho. Sublinha também a necessidade do país de “saber incluir cada vez melhor os imigrantes e de garantir a sua total inclusão com uma justa e adequada transição e cidadania”, adaptando-se às transformações demográficas e tecnológicas.

No terreno, Tahir é um exemplo dos muitos casos em que o Estado falha ao não conseguir responder atempadamente. “Tem sido doloroso”, confessa. “Quando a dignidade está em baixo, tudo desmorona. Temos vidas, esperanças e sonhos. Tenho um diploma e uma carreira com os quais gostaria de contribuir para este país. Não entendo porque é que este processo não pode ser mais fácil.”


Brain Waste é uma investigação internacional que resulta da colaboração entre os seguintes órgãos de comunicaçao social europeus:

Os dados citados neste trabalho foram obtidos pela Lighthouse Reports, uma redação de jornalismo investigativo, que teve acesso exclusivo aos microdados do European Labor Force Survey, publicado pelo Eurostat. Estes dados estão normalmente apenas disponíveis para investigadores e académicos.

Para além da sua prórpria análise e conclusões, colaboraram ainda com as equipas de jornalismo de dados do PÚBLICO, El País,The Financial Times que trabalharam com os jornalistas desta equipa na análise e interpretação dos dados. Unbias the News encomendou e publicou histórias de jornalistas freelancers na Suécia, Itália e Portugal.

A metodologia completa pode ser lida neste link (em inglês).

Todos os números e visualizações mencionados neste trabalho referem-se aos dados recolhidos entre 2017-2022, excepto para o Reino Unido, que só contribuiu para este inquérito até 2019.

Para todos os indicadores apresentados foi testada a significância estatística da diferença entre imigrantes e nativos. Nos casos em que a diferença não foi estatisticamente significativa, optou-se por não utilizar essa informação.

Uma vez que alguns países tinham amostras pequenas, optou-se por juntar alguns países em grupos de países, como é o caso do grupo Visegrad, dos países bálticos, os balcãs e a Bulgária/Roménia. (Bulgária e Roménia).

Os dados para a Alemanha não estão disponíveis no inquérito original.

Contribuíram para este projecto os seguintes jornalistas:
Beatriz Ramalho da Silva, Eva Constantaras, Justin Casimir Braun, Maud Jullien, Tessa Pang, Halima Salat Barre, Ella Hollowood, Alan Smith, John Burn-Murdoch, Daniele Grasso, Borja Andrino, Emilio Sanches Hidalgo, Maria Martin Delgado, Christina Lee, Justin Yarga, Gabriela Ramirez, Pablo Linde, Rui Barros, José Volta e Pinto, Ana Maria Henriques, Joana Bourgard, Joana Gonçalves, Tiago Bernardo Lopes