Um momento para respirar

Uma crónica "Do Rio para Lisboa".

No dia 2 de outubro de 2009 nós, brasileiros, recebemos eufóricos a notícia da escolha do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. A festa da delegação brasileira presente à reunião do Comitê Olímpico reunida em Copenhagen, transmitida ao vivo, logo se transformou em um carnaval pelo país afora. 

Entre 2009 e 2010 aqui no Brasil vivíamos outra realidade que se apresentava mais rósea e otimista, muito diferente da realidade do resto do mundo. Especialmente em relação aos Estados Unidos e a União Europeia, que se viam atônitos e tateando no escuro na busca de remédios para a crise iniciada em meados de 2008 e que se configurou como a maior e mais complexa das crises econômicas mundiais desde 1930.

A própria mídia internacional tinha uma percepção positiva do Brasil. Ninguém mais insuspeito para assegurar isso do que a revista Economist, que no mês seguinte festejava o Brasil com uma matéria especial de capa.

Nossas cabeças de brasileiros estavam tranquilas e serenas. Assegurados pelo presidente Lula, estribado em uma aprovação de quase 80%, que lhe conferia uma enorme credibilidade, contemplávamos confiantes o futuro, certos de que a crise por aqui não seria mais que uma “marolinha”, conforme dito pelo próprio presidente Lula.

As poucas vozes dissonantes não encontravam então eco. O ambiente geral era quase de euforia: aos indicadores positivos de crescimento econômico e redução da pobreza juntava-se a emoção de sediar os dois megaeventos de maior visibilidade global: a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.  Talvez tenha sido exatamente a euforia dessas duas conquistas que nos cegaram e desacreditaram de vez as poucas vozes críticas.

É verdade que outros fatores vieram se juntar à euforia dominante como a descoberta de reservas petrolíferas aparentemente infindáveis, os chamados campos do Pré-Sal. Tolos e chatos eram aqueles que alertavam que estávamos indo contra a corrente de fechamento do tempo onde combustíveis fósseis foram soberanos, devido aos desafios de lidar com sustentabilidade e aquecimento global.

O Pré-Sal foi o nosso ouro dos tolos e como pobres que ganham em loteria e só se preocupam com comemorações, a passagem do governo Lula em 2010 para Dilma se deu em clima de completa alienação e negação da realidade.

No clima de preparação de Copa e Olimpíadas seguíamos confiantes em frente. Empreiteiros felizes com a caderneta lotada de encomendas para Copa e Olimpíada pelos governos federal, estaduais e municipais: estádios novinhos e um sem-número de obras, principalmente para mobilidade, em 12 cidades-sedes. Os investimentos os dois eventos ao longo de oito anos devem ter custado aí pela casa dos R$200 bilhões de reais combinados recursos públicos e privados. Aliás é bom salientar que boa parte dos recursos privados saiu mesmo, em sua maior parte, de crédito fácil do BNDES, o gigantesco banco estatal de desenvolvimento. 

Enquanto isso a infraestrutura da nação era absolutamente negligenciada e sucateada. O Brasil desperdiçou quase quinze anos sem nenhuma providência verdadeiramente estratégica nos campos de energia, transporte e mobilidade, desenvolvimento urbano e tampouco em saúde, educação e segurança pública. Mas o brasileiro, médio e em sua maoria, seguia contente com a sensação de melhoria de vida; percepção baseada fundamentalmente na capacidade de compra de bens de consumo como smartphone, computadores e televisores de tela plana, tudo isso assegurado pelo crédito fácil e generoso.

Neste quase unânime consenso que vigorou até 2012, tínhamos ainda a melhor das perspectivas de aparecer bem na foto como anfitriões dos mais inesquecíveis megaeventos planetários representados pela Copa 2014 e pela Olimpíada 2016.

Não tinha chance de dar errado!

Mas em junho de 2013, sem que soubéssemos bem o porquê, um clima de insatisfação começou a emergir. Até hoje, é fato, não compreendemos como protestos estudantis iniciados em São Paulo pela recusa de aumento de meros 20 centavos na tarifa de transportes públicos se alastraram pelo país e se tornaram grandes manifestações de rua que ecoaram com raiva nas redes sociais. No contexto destas manifestações muitos ousavam dizer que enfim “o gigante acordou”.

No entanto sem novas lideranças na política que se identificassem claramente com as palavras de ordem, o movimento espontâneo de oposição nas ruas pareceu morrer e na sequência o país se entregou à euforia da realização da Copa de 2014, ao mesmo tempo em que o governo Dilma se preparava para a reeleição.

Os 7x1 da Alemanha – muito mais humilhantes do que os 2x1 do Uruguai, que derrotou o Brasil na Copa de 1950 no Maracanã – deixaram os brasileiros com um travo amargo na boca e sem nenhum saldo positivo que os governantes pudessem explorar. 

O descontentamento de setores considerados da população de maior renda e de maior escolaridade, ainda que sem a retomada das demonstrações de rua, foi se tornando crescente ao longo do ano de 2014, ano de eleições presidenciais, que culminou com a reeleição de Dilma por uma margem estreitíssima.

Mas, naquele ano de 2014, no dia 17 de março, tinha início o mais inesperado dos fatos: a Operação Lava Jato. Um até então, obscuro juiz de primeira instância do estado do Paranã, junto com a elite do Ministério Público e da Polícia Federal puxaram os primeiros fios da mais celebre investigação sobre corrupção de toda história do Brasil. 

Os números são acachapantes: 1.291 procedimentos investigativos instaurados, 643 buscas e apreensões, 175 mandados de condução coercitiva, 171 prisões efetuadas, 108 pedidos de cooperação internacional investigativa envolvendo 42 países, 61 acordos de delação premiada, 44 acusações criminais contra 216 pessoas, sendo 21 já resultantes em condenações, 7 acusações de improbidade administrativa contra 54 empresas envolvendo o ressarcimento de R$37,6 bilhões de reais. Por fim, na semana passada, o ex-presidente Lula foi finalmente transformado em réu por tentativa de obstrução da Lava-Jato. E isso não vai parar.

Uma parte considerável dos desdobramentos do processo político nacional desde então tiveram algum tipo de correlação com as investigações, prisões e delações que ocorreram no contexto da Lava Jato. Sem nenhuma dúvida, se inclui aí o próprio processo de impeachment de Dilma.

Se em seu primeiro governo Dilma não foi capaz de imprimir, coordenar ou mobilizar qualquer tipo de visão estratégica para a nação brasileira, no seu segundo governo iniciado em 2015, Dilma foi a catalisadora da maior crise econômica da história, superando a crise dos anos 1930. Crise esta que se arrasta pelas indefinições relativas à política.

A responsabilidade de hospedar os Jogos de 2016 tornou-se um fardo que não soubemos como nos desvencilhar. O Estado do Rio de Janeiro está em estado de calamidade sem recursos para pagar sequer seus aposentados. A municipalidade do Rio é fortemente assistida pelo governo federal para impedir a quebra das obrigações assumidas pela realização das Olimpíadas.

A preparação dos Jogos Olímpicos não se revelou a oportunidade para realizarmos aquele modelo inspirado em Barcelona que viemos seguindo desde 1993, quando de nossa primeira tentativa de candidatura para sediar os Jogos Olímpicos. As metas ambiciosas, ousadas e arrojadas que estabelecemos em 2010 ficaram pelo caminho. Entre estas a mais ambicionada seria tornar as favelas nas quais vivem 2 milhões de cariocas em bairros populares, meta que esperávamos cumprir em 2020, mas usando recursos captados no processo da preparação para os Jogos Olímpicos.  

A partir desta semana, o Brasil inteiro faz uma pausa por intermédio do Rio para ser o anfitrião dos Jogos Olímpicos. Nós brasileiros, mesmo diante de tanta incerteza política e econômica, vamos fazer aquilo que como povo sabemos fazer como poucos: festejar a vida!

De setembro em diante, nós, brasileiros, retomamos o nosso encontro com a verdade. Mais do que isso, vamos passar a viver sem subterfúgios nem desculpas a era das consequências.  

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