Uma radiografia da música do Classicismo

Alina Ibragimova regressou à Gulbenkian com o seu Quarteto Chiaroscuro.

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SUSSIE AHLBURG

Depois de na temporada passada ter despertado grande entusiasmo junto do público da Gulbenkian na interpretação das Sonatas e Partitas de J. S. Bach, a violinista russa Alina Ibragimova voltou a tocar em Lisboa no passado domingo, desta vez com o seu Quarteto Chiaroscuro. Formado por jovens instrumentistas de várias nacionalidades (incluindo, além de Ibragimova, o violinista espanhol Pablo Hernán Benedí, a violetista sueca Emilie Hörnlund e a violoncelista francesa Claire Thirion), este agrupamento criado em 2005 tem-se distinguido pela alta qualidade, precisão e elegância estilística com que interpreta as obras do Classicismo. Constitui também um excelente testemunho de uma nova geração que domina em paralelo tendências interpretativas diversas, usando quer instrumentos modernos, quer instrumentos de época, em vez de aplicar a mesma fórmula a repertórios de diversos períodos da História da Música.

O Chiaroscuro usa instrumentos com cordas de tripa e arcos setecentistas (ou suas réplicas), obtendo assim maior plasticidade e suavidade sonora, e toca praticamente sem vibrato, procurando recuperar aspectos das práticas de execução da época de Mozart, Haydn e Beethoven, os compositores em programa. Este tipo de abordagem, nomeadamente a clareza de linhas que emerge de um uso parco do vibrato, exige uma grande precisão no plano da afinação, da nitidez dos ataques e da coordenação rítmica, requisitos que os quatro instrumentistas dominam com proficiência. Também na escolha do programa, ao procurar fios condutores entre as obras escolhidas, Alina Ibragimova e o Quarteto Chiaroscuro revelam grande cuidado. O seu recital na Gulbenkian incluía o Quarteto nº 13, em ré menor, K. 173, de Mozart; o Quarteto em Fá menor, op. 20, nº 5, de Haydn, e o Quarteto nº 10, em mi bemol maior, op. 74, Harpa, de Beethoven. Pertencente ao grupo dos chamados “quartetos vienenses”, a composição de Mozart foi decerto influenciada pelos Quartetos op. 17 e op. 20 de Haydn, com os quais terá tomado contacto na capital austríaca. Para além de outras afinidades, ambos terminam com fugas (com dois temas no caso de Haydn), cuja escrita imitativa foi transmitida com impecável clareza pelo Chiaroscuro. Quanto a Beethoven, apesar de se tratar de uma obra já dos inícios do século XIX, reveladora de vários caminhos que se abrem com o Romantismo, tem ao mesmo tempo uma evidente filiação no Classicismo de Haydn e Mozart.

O Quarteto Chiaroscuro começou por abordar o Quarteto de Mozart de uma forma algo austera e distanciada, mas deixando emergir desde logo a enorme transparência das texturas e grande refinamento nos detalhes, como se se tratasse de realizar uma radiografia da composição. Mas pouco a pouco a interpretação foi ganhando em vitalidade e em nuances de colorido e dinâmica, tornando-se exemplar no caso de Haydn e Beethoven. O grupo é muito equilibrado, dando o devido destaque individual a cada um dos seus membros à medida que o discurso musical o solicita e Ibragimova não cede à tentação de enfatizar a sua condição de líder. Em andamentos lentos como o Adagio e o Adagio ma non tropo, dos Quartetos de Haydn e Beethoven, o quarteto surpreendeu pelas suas interpretações luminosas extremamente depuradas e pelas subtis cambiantes de colorido. No extremo oposto mostrou também uma energia rítmica contagiante, com destaque para o Presto de Beethoven, que recorre a um padrão rítmico com um forte parentesco com o célebre “motivo do destino” da 5ª Sinfonia.

 

 

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