Uma pérola como estreia

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Quando andava pelo fado-tango-pop dos Atlantihda, como vocalista do grupo, não era possível ainda prever até onde iria Gisela João. Porém, o primeiro disco que grava em nome individual, todo ele consagrado ao fado (género que, nela, é uma paixão radicada na infância), veio desfazer dúvidas.

Gisela João tem impregnada na voz uma forte matriz fadista, daquelas que surgem sem avisar, das que não se aprendem nem se ensinam mas estão lá, no sítio onde um fogo as acende nos momentos de entrega ou de génio. A voz grave e recolhida que se insinua logo de início, em Madrugada sem sono (a lembrar ainda o fraseado de Aldina Duarte), e que vai crescendo até tomar o corpo que na verdade tem, traça um percurso emotivo que é, a um tempo, visceral e dramático nos imponentes seis minutos e meio que dura o fado de João Black. É uma voz que nos há-de levar por entre a surpresa (como em Vieste do fim do mundo, de João Lóio, canção de autor que ela arrasta nobremente para o universo do fado) e o arrepio, como no arrebatador Meu amigo está longe (um dos momentos mais fabulosos do disco) ou nos amores em sangue de Sou tua, Sei finalmente, Maldição ou Voltaste (ouça-se a forma perfeita como ela finaliza este fado, sem destruir o efeito das palavras num grito), provam, todos eles, de que a “miúda” de Barcelos é já uma imagem que não se harmoniza com a imponência natural desta voz. Uma voz desafiadora em Primavera triste, de Aldina Duarte, festiva no Bailarico saloio ou Malhões e vira (ocasião para dar largas à sua costela minhota), sóbria mas bastante convincente em Não venhas tarde, que Carlos Ramos talhou para sempre à medida da sua voz, ou à-vontade no fado corrido de Antigamente (que o vídeo, no Youtube, beneficia com uma imagem de inusitada frescura, em contraste com a descrição das noites de “vinhaça”, banza e fado bairrista da letra de Manuel da Almeida). Por fim, a feliz transmutação da Mariquinhas de Alberto Janes, com letra nova (e escrita à primeira, sem qualquer acerto ou emenda) da rapper portista Capicua, sugestão de Francisco Vasconcelos, da Valentim de Carvalho, que Gisela João aceitou logo como ideia “espectacular”. Para quem ouviu a versão de Dar de beber à dor que Gisela gravou ainda com os Atlantihda (cantada primeiro num movimento dolente, de quase balada, e depois num fado-baile batido já com momentos de spoken word), a versão actual é uma actualização em sequência. Muda o cenário (já não há tabuinhas mas tijolos a taparem as janelas de uma casa em ruínas) mas mantém-se o chamamento primordial do fado, quando Capicua escreve - e ela canta - “a casa é a canção que sei de cor/ e cantarei toda a vida”. Gisela João deu-nos uma pérola na estreia. Oxalá não a estraguem.

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