Um teatro entre a fantasia e a poesia

Depois de um mergulho na dramaturgia contemporânea argentina, o Festival de Almada vira as atenções para o Novíssimo Teatro Espanhol. Los Nadadores Nocturnos e La Tempestad são dois exemplos fulgurantes do que se vai passando aqui ao lado.

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Los Nadadores Nocturnos

Há pianos em palco e uma particular inclinação para desatar a cantar a meio da função teatral – seja Radiohead, seja uma espécie de Tom Waits sem voz de alcatrão, seja ainda uma pouco credível sereia em pose de cabaré. E há uma cedência ocasional a exercícios coreográficos e gente a rebolar pelo chão.

Não porque as linguagens de Los Nadadores Nocturnos (11 de Julho, Centro Cultural de Belém) e La Tempestad (15 de Julho, Fórum Romeu Correia) se espelhem na perfeição, antes porque ambas as peças (uma criação original de José Manuel Mora e uma adaptação livre de Shakespeare, respectivamente) fazem questão de deixar-se atravessar pela cultura pop, por uma ideia de desarrumação narrativa, por uma tentativa de provocar o espanto, pela inserção do humor como ferramenta dessa sabotagem constante e pela emergência recorrente do delírio. No caso de Nadadores Nocturnos, dir-se-ia quase resultante da deflagração de uma bomba de fragmentação que desfez pontes e espalhou aleatoriamente resíduos de histórias por todo o palco.

José Gabriel López Antuñano, crítico de teatro, professor e coordenador do ciclo Novíssimo Teatro Espanhol agora apresentado no Festival de Almada (e em que se incluem Los Nadadores Nocturnos e La Tempestad, assim como outras quatro peças), explica ao Ípsilon que teve como intenção “mostrar este novo teatro que se escreve e representa em Espanha e que pressupõe uma ruptura com um modo de fazer muito tradicional”. Essa ruptura com temáticas e conteúdos da dramaturgia precedente – de Amestoy, Alonso de Santos ou Cabal, exemplifica –, começou a impor-se, na sua opinião, com a viragem do século, altura em que o apoio à dramaturgia contemporânea começou igualmente a ser cada vez mais visível. Daí resultam três linhas de actuação identificadas por Antuñano: a) autores que com uma estrutura ainda tradicional dialogam com a memória ou com questões que afectam o ser humano em sociedade; b) autores que rompem mais formalmente, através de uma estrutura desconstruída, e levam ao extremo comportamentos do ser humano perante uma sociedade absurda que não subscrevem e denunciam (exemplos: Angelica Lidell ou o argentino Rodrigo García); c) autores da mais recente safra que trabalham com uma escrita de cena contemporânea feita de estruturas fragmentárias e que sabotam a relação de causalidade e a vontade de contar histórias, para mostrar a sociedade, o pensamento actual e a ausência de lógica a que obedecem (entre eles, José Manuel Mora, autor de Los Nadadores Nocturnos).

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Los Nadadores Nocturnos: desarrumação narrativa
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Los Nadadores Nocturnos, precisamente, junta uma série de figuras solitárias que partilham apenas esse gosto particular por dar umas braçadas depois do sol-posto. Mas pode facilmente ler-se aí a inscrição numa parelha de características que a encenadora Carlota Ferrer frisa faltar desgraçadamente ao teatro espanhol: fantasia e poesia (o reverso de medo e burocracia em excesso).”Interessa-me um teatro em que a emoção, a reflexão, a crítica e a linguagem plástica vão de mãos dadas e me proponha uma experiência que não seja complacente, que me revele aspectos obscuros.” Se esse teatro resulta ou não em numa experiência fragmentada é uma mera “questão de forma”, desvaloriza. E a forma, diz, não é mais do que uma consequência acidental da investigação acerca de como chegar mais facilmente ao espectador, recorrendo a histórias propositadamente amputadas para que o público as complete com a sua imaginação, mas também a pequenas deturpações de estruturas clássicas. “Nem eu nem o Mora gostamos de etiquetas”, garante. “Ele a partir do lugar da escrita e eu enquanto encenadora tentamos seduzir o espectador sem uma fórmula ou com uma mistura de várias fórmulas utilizadas em liberdade.”

É também essa ideia do teatro como lugar onde tudo pode acontecer que Marta Pazos e a companhia Voadora assumem como essencial. La Tempestad, a sua primeira incursão por um teatro de reportório – “Shakespeare é uma maçã irresistível em que tínhamos de ferrar o dente”, graceja a encenadora –, não trai esta recusa em seguir normas de forma obediente e de cabeça baixa. “Penso isso como profissional do teatro que trabalha sobre a liberdade, mas também o penso como público”, comenta ao Ípsilon. “Se há algo de que gosto mais do que fazer teatro é ver teatro.” E essa “preferência”, não esconde, prende-se com a surpresa do efeito transformador que um espectáculo pode operar em quem vê.

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La Tempestad: uma ideia de delírio
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Com La Tempestad, a Voadora quis gastar os cartuchos da sua “pirotecnia” na busca empreendida por Shakespeare pela “máxima potência na fantasia”. “Preservámos a ideia da peça de teatro como uma festa, uma celebração, cheia de surpresas. Algo insólito, mágico e inesperado aparece em cada cena e nós respondemos a essa premissa plantada pelo autor.”

Talvez numa tentativa de chegar o mais próximo possível desse chocalhar imprevisto do mundo, Marta Pazos refere que nos processos criativos da companhia tentam sempre questionar-se e adoptar o olhar de quem, se preciso for, faz o pino para forçar a mudança de perspectiva. “Habitualmente temos o princípio e o fim das cenas e escolhemos sempre o caminho mais inesperado para construí-las”, descreve. Daí que para a adaptação de A Tempestade, de Shakespeare, tenham querido respeitar a estrutura original da peça mas insuflar cada quadro com um universo onírico desbragado. Exemplo: numa entrevista, Ferdinand, príncipe herdeiro de Nápoles, é chamado a provar as competências que constam do seu currículo enquanto putativo sucessor do rei Alonso. Fazer a espargata ao jeito de Jean-Claude van Damme entre duas cadeiras; tirar o cigarro da boca de alguém com um pontapé bem aplicado; fazer girar uma escova de dentes num só dedo. Por fim, num encolher de ombros, o candidato Ferdinand apresenta os vagos projectos que tem em mãos: “Sou príncipe, o meu pai vai tornar-me monarca mas não sei quando.” E assim "uma peça clássica" se transforma verdadeiramente em "autêntico teatro pós-dramático”, aventa a encenadora.

Perdidas e desaustinadas
Há igualmente um tom de desconcerto ancorado no esbatimento entre as dimensões privada e pública de Los Nadadores Nocturnos. Na apresentação das personagens como concorrentes de um reality-show encontramos sobretudo um desejo desesperado de aceitação – descrevendo-se como seres “normais e razoáveis” para desde logo derrubar barreiras e anunciar as expectativas de pais, professores e chefes a que pretendem dedicar-se. “O ser humano está condenado a viver em sociedade para poder sobreviver”, responde Carlota Ferrer, “mas paradoxalmente criamos sociedades cada vez mais desumanizadas onde cada um se sente sozinho. E busca o amor desesperadamente.” Daí que Mora e Ferrer, trabalhando em conjunto, tenham decidido expandir a ideia inicial de monólogo de um “actor que de noite manifestava com veemência o seu mal-estar com o tempo em que vivemos, sendo muito crítico da política actual e do capitalismo”, uma ideia construída pelo autor a partir de recolhas daquilo que se passa em Madrid, do que os amigos lhe contam, das notícias dos jornais e dos escritos nas paredes de uma cidade que pôs "à venda" os nomes das suas praças mais emblemáticas, agora dispostas a albergar o nome de uma empresa na sua designação oficial. Não é ficção: a Puerta del Sol foi renomeada como [inserir operador de telecomunicações] Sol durante uns tempos. Em vez de uma única personagem, dramaturgo e encenadora criaram assim sete, deixando-as ainda mais perdidas e desaustinadas na sua solidão diante dos outros.

Sob a máscara do exagero, do surrealismo e da excentricidade, López Antuñano vê no imenso fulgor do teatro espanhol contemporâneo uma menor dissensão da realidade do que em tempos anteriores. “O dramaturgo enfrenta a sociedade de dois modos”, caracteriza. “A partir de uma situação auto-referencial, insere-se numa sociedade que não partilha e o oprime; ou então tenta reflectir situações que afectam colectivos sociais, imersos na actualidade espanhola. O teatro político desapareceu em grande medida. São poucos os autores que abordam o compromisso político na sua escrita dramática. Quando há compromisso, é mais social ou existencial.” E mesmo quando esse compromisso vem à tona, faz-se acompanhar frequentemente da ironia. É esse o combustível que permite avançar por caminhos misteriosos, sem garantia de destino certo, mas nos quais, garante Carlota Ferrer, muitas vezes se descobre ouro.

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