Um raio de sol nos olhos

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Daniel Rocha

Doze anos depois da sua última grande exposição de museu, Pedro Cabrita Reis dá-se a redescobrir na Fundação Carmona e Costa e no Museu Berardo. Retrato em andamento de um artista que continua com vontade de caminhar por aí, e de andar pela rua aos pontapés numa lata: "É o enorme armazém de emoções do mundo que está ao dispor"

Passaram-se 12 anos desde que vimos em Serralves a última grande exposição de museu de Pedro Cabrita Reis (n. 1956) em Portugal. Hoje inaugura na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, "the whispering paper", uma retrospectiva de desenho - 390 trabalhos, a maioria inéditos. Amanhã há a pré-inauguração no Museu Berardo, também em Lisboa, de "One after another, a few silent steps" (inaugura e abre ao público dia 4). É a exposição que começou na Kunsthalle de Hamburgo, Alemanha, há dois anos, e, entretanto, passou pelo Carré d'Art de Nîmes (França) e o M - Museum de Lovaina (Bélgica). Chega a Portugal ampliada: cerca de 300 obras de escultura, pintura, fotografia e desenho. É redescobrir Pedro Cabrita Reis.

Passámos muito tempo sem acompanhar a tua obra. E sem te acompanhar. Foi uma década sem uma perspectiva de continuidade. Conhecemos-te? Apetece fazer-te a pergunta que a Maria João Seixas fazia aos seus entrevistados: Pedro, diz-nos quem és...

O catálogo da exposição da Fundação Carmona e Costa tem duas epígrafes. A do princípio diz assim: "Aprendi que afinal não era uma coisa só." É um bom começo para responder. Não há nenhuma forma de imaginar que qualquer um de nós possa ser uma coisa só. Por uma questão de comodidade, de condescendência, a maior parte das pessoas desenha para si mesma a noção de uma linearidade de vida em que as coisas são o que são. Chama-se a isso senso-comum. E a vida desenha-se nessa tristeza e nessa melancolia, cada vez mais próxima do vazio. A maior parte das pessoas atravessa o mundo dessa forma, com o grande privilégio de nunca ter de se questionar e de lidar com o horror de que tudo isto é finito, sem o incómodo de lidar com a circunstância de não ter capacidade para um papel heróico e, acima de tudo, de não ter um destino, ou de não poder desenhar de uma vez por todas o que seria o resto da sua vida. Os artistas e os criadores, em geral, vivem diariamente, a cada momento, a dor de cada obra que fazem - cada poema, cada verso musical, cada pensamento... - não ter outro objectivo que não seja sarar essa ferida, reencontrar uma harmonia, um lugar no mundo que seja de beleza. Sabemos que a beleza é a harmonia - é quase um cânone de índole matemática, não apenas uma História das coisas que nos agradam; é uma geometria subjectiva que imporia ao caos do mundo a harmonia que nos terá abandonado na altura em que perdemos o acesso ao Paraíso, no princípio de tudo. Assim, só se pode ser muitas coisas. É-se um homem de família com a nostalgia de viver sozinho. É-se um pai com a nostalgia de nunca ter envelhecido ao ponto de ser pai. É-se um artista que, em cada obra, preferiria apagar tudo o que fez para trás e recomeçar sem mácula o que se continua a perseguir e que seria, finalmente, uma obra igual ao mundo e, portanto, o território em que se poderia construir aquilo que se chama a Verdade...

No fundo, a única coisa que se poderá saber - e isto pode ser um banal lugar-comum, mas não se afasta muito da verdade - é que só podes viver em permanente dilaceração. Nos breves instantes em que fazes uma obra, num orgasmo, pode-se realizar o único, pode não haver diferença entre ti e o absoluto, mas só nos apercebemos quando já é passado. Não é no momento. É um breve instante de memória em que percebes que isso te aconteceu. E já não está ao teu alcance. Passou. Nesses momentos de luz, de que só te apercebes "a posteriori", poderás ter estado ligado em plenitude ao mundo inteiro. Tudo o resto é esquartejamento, como nas imagens de pintura clássica, em que estás agarrado pelos pés e mãos a quatro cavalos e te rebentas, um bocado para cada lado. Voltas-te a reunir; há um renascimento permanente. Mas não é nunca a possibilidade de exercer como projecto o facto de ser um só, ter a alegria de ser uno.

Não tenho resposta. Não te posso dizer os cães que sou. Só te posso falar nesta espécie de dilaceração, de perda.

Falas em ferida, dilaceração; contudo, visto de fora, pareces sempre um artista sem dor, um íman que fica no olho do furacão a apanhar energias no ar. O gesto criativo é para ti sem dor?

É. Quando falo de dor e dilaceração, falo de um processo de pensamento aplicado à tua condição enquanto pessoa. Digamos que há uma política e uma economia do pensamento e da alma. Aí, sim, podes verificar essa dilaceração; quando estou a trabalhar, não tenho nada disso. E não posso negá-lo, por muito que possa ser entendido como arrogância ou auto-contentamento. Não tenho dúvidas quando estou a fazer as coisas, nunca tive, desde miúdo. Posso, eventualmente, após o primeiro passo, olhar para o que se materializou e concluir: ah!, afinal isto tem aqui uma coisa. E resolvo-a.

Aprendes com o trabalho. Começas por ter um pensamento primordial de onde decorre o caminho pelo qual os teus passos se afastam até fazeres a coisa; depois, quando olhas para trás e vês a marca dos pés no chão, há umas passadas que saem desalinhadas do caminho e dizes: não! E voltas e encolhes ou esticas ou torces ou anulas, sem qualquer piedade, esses erros que cometeste.

Fiz muitas obras para as quais olhei e percebi que não acrescentavam nada de especial ao que tinha feito antes. Qualquer artista te dirá isto, se tiver coragem: no fundo, escapam ou aproveitam-se meia dúzia de coisas das centenas que foste fazendo. Isso assumo. Não encontro é naquilo que sou a dor do acto criativo. O meu acto criativo é um acto de alegria. Não é um acto de rompimento, de fissura ou de perda. De forma nenhuma. Quando fazes, fazes. Estás todo lá dentro. Não há questões. A única questão é quanto tempo vai durar a fazer, porque tem de ser breve, intensamente. Tem de ser quase tão rápido quanto o pensamento. Pelo menos eu só consigo trabalhar assim. Não tive nunca a capacidade de esperar, de ponderar sobre o modo de fazer. Quero uma coisa, faço-a num momento, desfaço-a a seguir, se não gosto.

Seria de uma enorme veleidade pensar que de cada gesto de um artista nasce uma grande obra; é óbvio que nem todas as peças podem ser grandes peças...

Não são, de facto. E não faz sentido negares a obras menores. A única coisa que faz sentido é saberes que a tua vida é feita de todas as coisas que vêm ter contigo e das coisas que encontras e transformas para fazeres aquilo que queres ser. As obras menores são importantes porque ajudam a distinguir as maiores. As maiores dão uma luz que brilha mais longe se tivermos o canto do olho nas mais fracas. Isto é importante. Não é uma coisa que possas apagar e deitar fora.

Dizes "transformar para fazer aquilo que queres ser". No texto do catálogo, o António Lobo Antunes fala, antes, no artista como emissário. Cita Pessoa e diz que os versos "Emissário de um rei desconhecido/Eu cumpro informes instruções do além" podiam ter sido escritos para ti. Vês-te como um emissário? Ouves a famosa outra voz? Ou isto é poesia?

Nem é verdade comigo nem poesia. Não há distância entre aquilo que sou e aquilo que faço, portanto não sou emissário de nada. Tudo o que sai das minhas mãos e do meu pensamento sai exactamente daquele lugar que sou eu. Sou um lugar no meio do mundo. E esse lugar é esta coisa estranha da forma como olho, como penso, como me desloco, como conheço outras pessoas, como as vejo ou não as oiço. Não há nada nos meus trabalhos que me anteceda.

A ferramenta verdadeiramente importante de qualquer autor ou artista é a curiosidade. Não é apenas o interesse. É a capacidade de se maravilhar, aquilo a que chamaríamos espanto, em termos filosóficos. Essa é a única matéria de que tudo se faz. Se não tens uma disciplina, uma quase ética, eu diria, para estar em permanente estado de curiosidade, em permanente estado de humildade perante tudo o que se passa à tua volta - o bom, o mau, o horrendo, o sublime, tudo, das coisas mais aparentemente banais às que te emocionam ao ponto de ficares profundamente perturbado, sejam elas um sorriso simples até à morte de alguém de quem gostas...  Não podes de forma alguma ter uma reacção pré-cunhada. Tens de te forçar, de te disciplinar. É um trabalho da alma, do espírito. É uma coisa que tens de te impor a ti próprio, manter essa curiosidade. Caso contrário é quase imoral dizeres que és artista. Recusares-te é declinar a única responsabilidade de que podes usufruir. Se mantiveres essa curiosidade, estás preparado para receber o que o mundo te dá; depois vamos ver se és ou não capaz de o transformar em qualquer coisa que seja tua, devolvê-la ao mundo e, com isso, aumentar a inteligência e as possibilidades de o mundo ser uma espécie de redenção. E salvar-te, de alguma forma. Não se é emissário de nada, a não ser de si próprio. Ser emissário pressupõe que há um caminho atrás de ti e que te foi dada uma coisa que tu transformas. Não. Foi-te dada uma graça particular que é teres um dispositivo interior que te leva a ver o mundo de uma forma particular - nada de significativo, se não for usado para dares ao outros o que sabes fazer. E isso vem da tal curiosidade, o tal vocativo ao qual não podes escapar. Não podes entrar no atelier e imaginar que sabes o que vais fazer nesse dia se não viste nada que te diga o que vais fazer.

Ainda o Lobo Antunes: diz que o teu trabalho levanta as máscaras que cobrem "a nossa nudez essencial"...

É o começo da nossa conversa. A máscara tem, de forma mais imediata, o apelo do mistério sobre o que há por trás dela. Eu prefiro lê-la no sentido da multiplicação do Eu e não da elisão. Não tanto porque haja momentos de dissimulação ou, sequer, a pretensão apologética de revelar uma verdade por trás de outra coisa. Não. Tudo é verdade. Até ao momento em que podemos encontrar as ligações entre cada fragmento e chegar àquela coisa única, o absoluto, sem qualquer tipo de ferida ou fissura entre o sonho e nós materializados como nós. Não acho que haja máscaras. As coisas e as pessoas, todas as instâncias e circunstâncias são exactamente aquilo que nos é oferecido à compreensão, não são uma coisa só. O nosso erro é não perceber a multiplicidade de sinais, uma espécie de recusa em ouvir, estar atentos. É como olhar através do microscópio electrónico e ver a confusão tremenda do núcleo, átomos, electrões, tudo ali, brrrr, a mexer à volta. É tudo a mesma molécula. E só a percebes no seu todo se perceberes a confusão dos seus parciais e que ela nunca está no mesmo sítio. Tens de ser inteligente em movimento, tens de ser poeta em andamento, pintor em andamento. Tens de te mexer, de caminhar a toda a hora. Não há nada de estável no universo. Nem dentro de ti nem fora de ti. E só podes ter a percepção da beleza extraordinária e do medonho que é estar sozinho no meio desta confusão se te impuseres essa espécie de desaparecimento dentro do movimento. O contrário é o exercício do medo. Ora, o medo não nos traz alegrias nenhumas nem nos permite criar.

Portanto, és um artista sem dor e sem medo?

Eu? Acho que todos temos medo.

Procuramos formas de o resolver... Na visita-guiada, em Hamburgo, disseste uma coisa inesperada. Foi ao falar da peça mais antiga, "Muito Tempo" [1989], que explicaste representar uma montanha. Disseste: "As montanhas têm a ver com Deus. É por isso que as subimos, que as tentamos conquistar, para tentar chegar mais perto." Que Deus é este?

Esse nosso grande problema de Deus... Ao contrário do que se poderá pensar, sempre me interessou o pensamento religioso, talvez mais do que seria legitimo esperar de uma pessoa que vive no século XXI e é um artista contemporâneo com experiência política e alguma ironia e distância em relação ao mundo do bomsenso, ou do senso-comum. É outro texto que escrevi para o catálogo de que comecei por te falar: quando estás sentado à noite e olhas para o céu e avanças pelo escuro, por entre as estrelas, tentando imaginar o que está por trás delas, e o que está por trás disso, acabas por te dar conta de uma coisa que a tua humanidade não abarca, que é a noção de infinito. Não abarcas, é impossível, não consegues; andamos há anos a fazer contas e a inventar computadores cada vez mais velozes e inteligentes para tentar perceber - isso, uns; outros pintam quadros, como eu, outros escrevem, outros... pá... suicidam-se... - e a circunstância dramática é que não tens pensamento para imaginar uma coisa que não tem finitude, por muito que te ofereçam equações interessantes... Portanto, quando percebes que não consegues abarcar a noção de infinito, borras-te de medo. E choras. Porque não sabes o que é que se passa. Então, naturalmente, terás de integrar na equação da tua existência o facto de, apesar de tudo, parecer haver um sentido nas coisas. Porque, por exemplo, é no Inverno que as laranjas aparecem, e as laranjas têm vitamina C, que é um sucedâneo do sol, que não há nessa altura. É claro que não vamos arranjar explicações esotéricas. Mas, verdade seja dita, parece assistir ao universo uma espécie de ambição de harmonia e de equilíbrio e de inteligência que parece fazer com que as coisas façam todas parte umas das outras, se justifiquem, se prolonguem, se reencontrem umas nas outras. É muito interessante pensar nisso tudo. E a verdade é que nem a velha criatura barbuda que aparece nos catecismos da Igreja Católica nos serve para rir e deixar a questão de parte. Essa literatura é lixo e vai para o lixo, que é onde deve estar. Essa forma de pensar é arcaica e um insulto à nossa capacidade de raciocinar. Mas, se fizermos uso de todas as nossas capacidades e nos apercebermos da propensão para o sentido que tudo parece ter, temos de pensar que essa espécie de desordem inata que cola tudo e parece fazer tudo andar para certo sítio pode ser nomeada. Então, aí, fazes a coisa mais violenta e mais bela que alguma vez criámos, que foi a palavra: nomeias as coisas. E a palavra Deus é tão boa como outra qualquer para responder às nossas questões.

A arte continua, então, a ser um diálogo com Deus?

Claro! Porque ela ambiciona representar tudo. Cada pincelada é o "Big Bang" original. Tchung! Fazes isto [junta o indicador ao polegar] e isto é tudo! Antes de descermos das árvores já o fazíamos. Depois, arrastámo-nos cá para baixo e pusemo-nos de pé. Quando fazes isto [põe uma caneta na vertical, representando o homem], depois queres abarcar o mundo todo. Aí, a coisa mais simples é isto [põe uma caneta na horizontal em frente à vertical], e isto é a linha do horizonte. É a linha que nos falta.  Nunca chegas à linha do horizonte, por mais que avances ela está sempre para lá dos teus passos, por mais que avances nunca chegas a coisas nenhuma, continuas sempre a caminhar. Esta ferida nunca poderás sarar, jamais. Contudo, com ela, cria-se também uma coisa extraordinária, que é a vontade de caminhar. E, ao caminhar, estás junto com tudo, és exactamente igual a tudo o que está à tua roda. Voltamos atrás: é ao caminhar que exerces a curiosidade e a humildade perante tudo, e o absorver e transportar disso para as coisas que fazes. Sejas escritora, matemática, política, economista...

É tudo igual? Ser escritora, matemática, política...

Gostaria de imaginar que fossem apenas diferentes formulações de inteligências idênticas e que todos pudéssemos fazer coisas extraordinárias. E que a forma extraordinária como essa coisa extraordinária fosse exercida tinha o estatuto da criação e pudesse implicar que conseguíamos, passo a passo, anular Deus da equação e sermos nós perfeitos. Apesar de tudo, continuo a achar que o pensamento marxista é válido como ferramenta de pensamento do mundo.

Em que aspectos?

No banal, por exemplo, da dialéctica. É uma escola de pensamento incontornável. É uma herança histórica que nos vem do judaico-cristianismo: a questão da dúvida. Desculpa!, como é que imaginas o mundo sem a palavra talvez?, sem coisas que nunca são absolutamente verdade e que temos de reinventar a todo o momento... Fomos nós que inventámos isso. Nós!

E, contudo, o mundo está cheio de pessoas cheias de certezas.

Exactamente. Como também está cheio de telemóveis e centros comerciais. Mas, tal como não pisas as flores num jardim, por muito pouco que gostes de flores e apenas gostes de árvores - porque as flores têm um papel, completam os espaços em que as árvores não têm terreno; umas e outras dependem-se mutuamente; não pisas as flores, por muito pacóvias que sejam -, também é preciso que haja senso-comum, pessoas com certezas, para podermos manter sempre perene esta espécie de interrogação de querer destruir para voltar a construir. Os lugares-comuns e as certezas banais são importantíssimos para os artistas e pensadores, para todos os que trabalham na área do pensamento.

Uma coisa bastante comum: a casa. É impossível falar da tua obra sem falar em casas. Está por ver onde vai desembocar esse interesse, mas onde é que ele começou? Consegues identificar?

Primeiro gostava de voltar a reiterar uma coisa. Por uma questão de comodidade na nomenclatura, gerou-se a opinião na crítica de que o meu trabalho teria uma ligação indissociável com a arquitectura. Tantas vezes quantas essa associação foi feita eu contrapus que não era a arquitectura o mote, mas sim a construção. Há uma diferença abissal, para não dizer uma absoluta impossibilidade de conciliação entre arquitectura e construção. Arquitectura é, a meu ver, um dispositivo social - ou, melhor ainda, político, para não dizer ideológico - de ordenamento de fluxos sociais. Constróis cidades -  casas, avenidas, ruas, condomínios, apartamentos, projects, "lofts"... - no sentido de organizar uma possível convivência não excessivamente violenta entre os diferentes actores da urbe, e, por extensão, da sociedade. Isso é a arquitectura. Também fazes umas casas, umas vivendas, umas coisas, mas isso é a parte decorativa. A parte crucial é o desenho da cidade, que é a contenção da violência eminente que, hello!, a despeito do pensamento neoliberal está aqui, todos os dias, a toda a hora, desde que acordas até que vais para a cama... Portanto, tenho, como toda a gente, conhecimento de causa disso, mas o meu trabalho está noutro território. Tem uma primordialidade material e intelectual que é anterior à questão da arquitectura. A construção tem a ver com o lugar que os homens criaram dentro e por oposição à Natureza, à qual inevitavelmente pertencem mas com a qual, inevitavelmente, não comunicam. Porque não comunicam. Imagina a solidão desta nossa espécie rodeada de árvores, pedras, água, gaivotas, sol, nuvens, mosquitos... e só falamos uns com os outros, tudo o resto é matéria de apreciação à distância. Não temos nenhuma outra possibilidade de nos conferirmos um território que não seja pela construção, pelo acto de impor ao caos original da natureza a ordem do pensamento humano que é a construção da casa. É disso que eu falo. Se nas minhas obras são declináveis objectos, circunstâncias, momentos que têm a ver com o léxico da arquitectura, desculpa!, então também poderíamos falar de maçãs e Cézanne... O Cézanne seria considerado um pintor ligado à silvicultura por pintar maçãs? Ou seria geólogo ou montanhista por pintar o Mont Sainte-Victoire? Não! Nada! O que se passa é que na altura havia um gajo chamado Baudelaire e, hoje, à parte algumas honrosas excepções, não temos nenhum Baudelaire de serviço. Só porque tenho uma janela numa peça, não estou a falar de arquitectura! Estou a falar de lugares de passagem! Portanto, atenção: não colho da arquitectura nada que não seja exactamente igual ao que colho de andar aos pontapés a uma lata na rua. Uma lata na rua pode vir a ser um bom mote para um desenho ou uma pintura ou parte integral de um qualquer objecto escultórico. É o enorme armazém de emoções do mundo que está ao dispor. Acho plenos de sentido esses pequenos fenómenos da pequena linguagem dessa coisa de fazer casas, chaminés. De qualquer forma, isso corresponde a um grupo pequeno e a um determinado segmento temporal do meu trabalho.

Pequeno, dizes, mas vemos casas ou partes delas ou referências a elas por todo o lado no teu trabalho...

Sim, mas falavas há pouco e com muita justeza num hiato. As pessoas, de facto, não acompanham o meu trabalho. Provavelmente, a última vez que fiz uma coisa dessas foi há oito, dez anos.

Lá chegaremos. Entretanto podes explicar um pouco melhor esses "pequenos sentidos dessa pequena linguagem de fazer casas, chaminés"?

É o encontro com uma noção primordial humana: como dizia, o lugar do homem na natureza. Não é o objecto casa que me interessa, são os motivos tendentes à sua existência. É essa primordialidade filosófica, antropológica, poética, teleológica, o que queiras. É o acto de desenhar o território na natureza. Um acto de imposição, claramente, uma violência inevitável, uma penetração no sentido de criar. A casa não tem nenhum interesse. O que tem interesse é o que leva à sua existência. Só podemos perceber porque é que as casas são importantes se as olharmos não como objectos mas como sintoma da única forma possível de o homem viver no mundo: através da construção. Só conseguimos realmente aferir a distância que queríamos percorrer até à linha do horizonte se a aferirmos a partir do ponto de partida, que é o lugar da casa. Uma e outra coisa dão-te a medida do universo. No meio há umas árvores e uns rios e umas coisas dessas...

Na "Poética do Espaço", o Bachelard define a casa como "o nosso canto do mundo", dentro do qual, encerrados na nossa solidão, preparamos aquilo a que ele chama as nossas explosões e feitos...

Terá escrito isso nos anos 40...

Anos 50. 1957.

À noção de "o nosso canto do mundo" contraporia: não -  é, de facto, a nossa concepção de universo, e o problema da medida do universo. A casa é a concepção de um modelo de universo que se pode medir. Não é um canto, não é um refúgio, não é um elemento entre muitos cujo somatório pudesse dar o retrato da humanidade. É, de facto, um olhar de inteligência que perdeu o acesso ao Paraíso e faz uma imposição sobre o mundo. Consegues uma casa. E essa casa é o universo. É verdade que é uma coisa que poderíamos imaginar como anterior ao problema do Abel e Caim, das classes sociais, e que, portanto, é de todos, ricos e pobres. Mas essa linha de pensamento iria desembocar inevitavelmente na arquitectura. Não é um território que tenha a ver com a noção de construção.

Se a casa não é um refúgio, então não é também uma segunda pele.

Não, porque a casa não é protectora. É um desígnio de poder e de afirmação, de autonomia e de liberdade. Estamos sós. Libertámo-nos do problema de Deus, abandonados pelo próprio. Saímos do paraíso; vivemos aqui. Todas as casas do mundo são um Checkpoint Charlie contra a pedra, a árvore, o rio, contra o inenarrável. A tua noção de universo e as tuas angústias sobre a infinitude são respondidas, com alguma tristeza, com a construção. Tens de criar um lugar a partir do qual olhes. Constróis a casa, e, a partir daí, moves-te.

De facto, o Bachelard defende uma visão diametralmente oposta. A casa como paraíso artificial...

Ao falar de um paraíso artificial, ele defende ainda a percepção do humano como dependente da lógica de Deus. Fala ainda de uma lógica de vingança contra o pai. Só que nós não temos pai! E isso é que é o belo desta coisa toda! Porque podemos fazer tudo! É por isso que não é imoral matar! Percebes? Porque não há nenhuma regra! Nisso é que o Camus é extraordinário, quando, n' "O Estrangeiro", o gajo, no final, mata o outro porque o sol lhe bate nos olhos! Nunca na história da literatura europeia houve uma definição tão perfeita da beleza de ser humano e da independência, porque podes cometer um acto dessa magnitude e levar à morte de outro por uma circunstância fugaz como um raio de sol nos olhos.

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