Um escritor de condição trágica

Num dos lugares vergilianos por excelência, o Colégio do Espírito Santo onde hoje está instalada a Universidade de Évora, Vergílio Ferreira foi celebrado como uma figura maior do romance português do século XX, mas de onde não estão ausentes as contradições.

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Vergílio Ferreira no centro, rodeado das suas alunas

Vergílio Ferreira nasceu há cem anos e morreu há vinte. O seu centenário será celebrado ao longo do ano, com colóquios e reedições. Estas comemorações têm sempre uma ambição mais vasta que a da simples celebração: servem para reavivar a recepção pública de um escritor (tanto mais necessária quanto o património literário está sujeito a uma impiedosa rasura) e, ao mesmo tempo, para revê-lo criticamente à prova da distância temporal. Cem anos também faria no próximo mês de Julho Mário Dionísio, que foi colega de Vergílio Ferreira no Liceu Camões, quando ambos aí foram professores. Cruzaram-se nos percursos biográficos, mas nada os aproxima quanto aos percursos literários e intelectuais: a ruidosa ruptura de Vergílio Ferreira com o neo-realismo, nos anos 50, coloca-o à distância de um dos principais teóricos desse movimento estético-literário (o que não significa que Mário Dionísio tenha ficado agarrado a uma ortodoxia doutrinária).

A primeira grande manifestação comemorativa aconteceu na Universidade de Évora, durante três dias, de 29 de Fevereiro a 2 de Março. Tratou-se de um colóquio internacional intitulado Vergílio Ferreira: Entre o Silêncio e a Palavra Total e decorreu num dos lugares importantes da vida e da obra do escritor. O edifício central da Universidade de Évora, o magnífico Colégio do Espírito Santo, foi o antigo Liceu da cidade, onde Vergílio Ferreira foi professor de 1945 a 1959; e a personagem principal de Aparição, romance de 1959 onde se inicia uma fase da obra em que o pendor filosófico-especulativo de tipo existencial a afasta definitivamente do espaço neo-realista, é um professor do Liceu recém-chegado a Évora. O romance começa aliás pela chegada de Alberto Soares – a personagem que também é o narrador – à estação de comboio da cidade.

Um dos alunos do professor de Latim e Português foi Almeida Faria, no último ano de Vergílio Ferreira em Évora, tendo continuado a ser seu aluno porque se transferiu para o Liceu Camões. Recordou o professor austero que vestia sempre uma gabardine. Almeida Faria iniciou-se aos dezanove anos como romancista sob a égide Vergílio Ferreira, que escreveu um prefácio para Rumor Branco, romance de estreia, em 1962. Esse prefácio a um livro nitidamente devedor das experiências mais vanguardistas do “nouveau roman” mereceu uma crítica satírica de Alexandre Pinheiro Torres, que por sua vez teve direito a uma resposta violentíssima de Vergílio Ferreira. A polémica prolongou-se e o dossier completo constitui o apêndice das mais recentes edições de Rumor Branco. De resto, a verve do Vergílio Ferreira polemista (um discurso que era então praticado quase como um género e que está hoje completamente ausente da vida literária) poderá ser apreciada noutros momentos. Por exemplo, quando, a propósito do estruturalismo e de As Palavras e as Coisas, de Foucault, teve uma polémica com Eduardo Prado Coelho, em 1968.

Assistir às intervenções de dezenas de especialistas da obra de Vergílio Ferreira fornece uma ideia da sua recepção actual . Tenhamos em conta que se trata de uma obra muito extensa distribuída por vários géneros: romances, sobretudo, mas também contos, diários, ensaios. Manhã Submersa (1954), que Lauro António transpôs para o cinema (filme e realizador estiveram aliás em Évora) e Aparição, que durante muitos anos fez parte do programa de Literatura do secundário, estão longe de ser os títulos privilegiados pelos estudiosos: Para Sempre (1983), Em Nome da Terra (1990) e Cartas a Sandra (1996) parecem colher hoje mais favores. Vergílio Ferreira disse várias vezes que o seu livro preferido era Alegria Breve (1965). Um romance como Aparição, com toda a sua carga ostensivamente existencial, tematizando a questão de um “eu” metafísico que se revela a si próprio, já não pode hoje ser lido sem reservas e distância. Manhã Submersa, ainda próximo do neo-realismo, mantém uma maior frescura e actualidade . Certo é que na obra de Vergílio Ferreira nem tudo se equivale.

O seu afastamento em relação ao neo-realismo e à ideologia que esteve na sua base, o marxismo, é um dos factos marcantes na literatura portuguesa na segunda metade do século XX porque foi motivo de polémicas, discussões, diferendos. Vergílio Ferreira, como é bem visível nos Diários (nove volumes, abarcando um tempo que vai de Fevereiro de 1969 a Dezembro de 1992) tinha os seus ressentimentos, cultivou guerras e inimizades, estava longe de ser um homem pacífico e vivia com uma insatisfação permanente, achando que os seus contemporâneos não lhe prestavam a devida atenção nem o coroavam de reconhecimento. Os seus queixumes, guerras e quezílias alimentaram muitas páginas do seu Diário, que teve um efeito agitador do morno ambiente literário. Foi um acontecimento que promoveu o campo de batalha. Para uma história da vida literária desses anos, os vários volumes de Conta-Corrente oferecem uma abundância de material. Mas eles não se reduzem a isso: Vergílio Ferreira foi sempre um homem atento ao mundo e muito actualizado nas leituras e nas informações. Por exemplo, há páginas dos seus ensaios de meados dos anos 60 em que cita Derrida e Alain Badiou, dois filósofos ainda jovens que só mais tarde ganharam uma enorme projecção internacional.

Ávido de reconhecimento, intrépido nas suas guerras contra hegemonias culturais e literárias favorecidas pelas contingências políticas e pela distribuição das forças da oposição ao regime, Vergílio Ferreira exerceu o juízo crítico com lucidez, mas também, às vezes, com equivocada razão. No colóquio aludiu-se de passagem e com alguma incomodidade às reservas que manifestou em relação à obra de Agustina. Mas devemos recordar a sua rejeição de Fernando Pessoa. Para não falar da hostilidade que lhe merecia Carlos de Oliveira, cuja obra ele considerou que era inflacionada por “um bando de súbditos que se desfaziam em artigos sobre ele”. Tanto nos seus juízos como na sua própria escrita de ficção narrativa (aquela a que deu sempre mais importância, tudo o resto ele remeteu para um segundo plano ou atribuiu-lhe mesmo o estatuto de “paleio”, como chamou aos diários), Vergílio Ferreira mantém uma ambiguidade que nunca se resolve: acompanha o que há de mais contemporâneo, mas mantém sempre um certo recuo, há limites que nunca transpõe. Cortou com o cânone realista, mas até ao fim sonha com uma totalidade, um todo orgânico que já não pode ter lugar no seu mundo literário e intelectual. E a sua obsessão pelo indizível e por trazer à luz as zonas de sombra traz consigo uma problemática de ordem metafísica que muitos dos seus pressupostos estético-literários deveriam logicamente ter revogado. O seu ensaio sobre Foucault e o estruturalismo é muito significativo quanto ao seu quadro de pensamento fiel às premissas de um velho humanismo. A totalidade, o sentido, a racionalidade, o homem, o sujeito: estas grandes categorias virgilianas são ainda as de uma ordem clássica, que ele tenta no entanto enxertar em formas modernas. Daí a impressão de que a sua obra é feita de avanços e recuos, de experiências absolutamente modernas, matizadas por uma nostalgia da razão clássica. Por isso, ele foi um trágico: um escritor que teve sempre de lidar com uma consciência dilacerada, perfeitamente consciente do seu tempo e das formas literárias que a ele respondem com justeza, mas olhando para trás com receio de entrar num terreno que ele temia e considerava inabitável. A sua obra ensaística e o seu pendor reflexivo-filosófico (que encontra a mais completa realização num livro de 1992, laconicamente intitulado Pensar) foram, no fundo, uma tentativa de legitimar e formular os pressupostos conceptuais da sua obra literária.

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Vergílio Ferreira, o segundo a contar da esquerda, vestido com um sobretudo

Curiosamente, tanto a consciência trágica como esta ambiguidade fundamental em relação ao seu próprio tempo, isto é, o compromisso declarado com uma modernidade e as resistências e reservas que ela lhe suscitou, ecoaram de uma maneira ou de outra em alguns momentos do colóquio em Évora. Vergílio Ferreira não é um escritor facilmente classificável e os mesmos argumentos críticos que servem para valorizar certos aspectos da sua obra soçobram perante outros aspectos. Por exemplo, a elaboração temática de cariz filosófica, presente em muitas páginas dos seus romances, é às vezes um salto livre de grande alcance e outras vezes um empecilho filosofante. É nos ensaios sobre a arte, especialmente aqueles reunidos no primeiro volume de Espaço do Invisível, que somos confrontados com preocupações de Vergílio Ferreira marcadas por um certo anacronismo: a arte entendida sempre como desejo de absoluto e tentativa de trazer à luz algo que é da ordem do incognoscível, dando a ver a face do impensável. Ou seja, a arte como experiência mística. Evidentemente, esta base de uma teoria da arte afastam Vergílio Ferreira de toda a estética e arte contemporâneas, como se percebe facilmente lendo os seus ensaios.

Nos últimos anos da sua vida, conviveu bastante com Maria Gabriela Llansol. E não por acaso esta “correspondência literária”, onde é mais fácil descortinar diferenças do que semelhanças, foi objecto de duas comunicações no colóquio de Évora. A admiração era mútua (e cabe aqui lembra que Vergílio Ferreira escreveu uma vez que uma coisa é os artistas que amamos, outra é os artistas que admiramos), mas essa admiração tinha como pressuposto uma consciência clara e sem equívocos de que pertenciam a mundos literários e de pensamento diferentes. A escrita de Maria Gabriela Llansol era para Vergílio Ferreira um desafio que o motivava. Mas a sua busca de uma totalidade (ou a dilaceração por ela já não existir) e de um “eu” correspondente a ela não faziam qualquer sentido para Maria Gabriela Llansol. De certo modo, podemos dizer que a obra de Llansol lhe devolvia, como um espelho e sob a forma de um problema, algo a que a sua própria obra não podia ser indiferente, ainda que constituísse para ela um horizonte negativo. De resto, nada do que era literatura, pensamento e arte foram indiferentes a Vergílio Ferreira. Escrever foi, para ele, colocar-se num lugar da máxima convergência dos signos plenos e dos abalos filosóficos, literários e ideológicos que fizeram tremer a sua época.

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