Sem Tobis e no crepúsculo da película, o futuro do digital é uma incógnita

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"Viagem à Lua", de Georges Méliès, foi uma das obras fundadoras do cinema, película recentemente restaurada e colorida DR

A venda da Tobis deixa um vazio no cinema português: a esmagadora maioria dos títulos nacionais não está em digital, arriscando por isso a invisibilidade. "O mundo como o conhecemos está a acabar", diz Silva Melo.

Na semana passada, Rodrigo Areias, realizador e produtor, telefonou para a Tobis para marcar a revelação e tratamento da película em que o finlandês Aki Kaurismäki filmou "Tasqueiro", a curta com que participa na Capital Europeia da Cultura. Como resposta, recebeu a indicação de que o laboratório faria a revelação, mas já não asseguraria outros trabalhos - consequência prática da venda e da dissolução da empresa que foi o estúdio histórico do cinema português.

Areias e Kaurismäki acabaram por recorrer a um estúdio alemão. "Não nos interessava fazer a revelação na Tobis e ir à procura de solução para o resto", justifica o produtor. "Estamos todos a ser empurrados para o digital", diz, explicando que vai rodar este ano uma curta ainda em película, "um acto de resistência", sob o título "O Cinema Morreu!".

O cinema em película está a morrer, e o fim da Tobis é expressão desse facto inelutável. Mas a dissolução da Tobis não deixa só o país sem nenhum laboratório para a revelação da película. Abre também um vazio na transposição para digital do património cinematográfico português, maioritariamente em película, e que se tornará tanto mais invisível quanto as salas vão abandonando a projecção em 35 milímetros. E o interesse da Cinemateca, manifestado pela directora, Maria João Seixas, de adquirir equipamentos da Tobis deixados fora do negócio com a angolana Filmdrehtsich não alterará o quadro: o equipamento servirá sobretudo para a conservação e restauro da película, missão prioritária da instituição.

Um mundo que acaba

A maioria dos realizadores sabe que o fim da película está a ser determinado mais por razões económicas do que artísticas. Mas também reconhece que esta é uma situação inevitável.


Jorge Silva Melo, 63 anos: "Faz-me imensa impressão que a película acabe. O mundo como o conhecemos está a acabar." Miguel Gomes, Marco Martins, Bruno de Almeida e Susana Sousa Dias, realizadores mais jovens, usam palavras como "magia" e "emoção" para se referirem ao trabalho com película. Vão buscar o grão da imagem, a correcção da cor, o prazer do trabalho de laboratório...

"A película tinha sempre defeitos. O digital é tecnicamente perfeito, só que às vezes é preferível procurar a perfeição no imperfeito", diz Marco Martins, 39 anos, realizador de "Alice", que se arrisca a ser o último cliente da Tobis, já que tem nos laboratórios um trabalho para publicidade.

Bruno de Almeida, 47 anos, a acabar "Operação Outono", longa baseada no assassinato de Humberto Delgado, também refere a questão do "artesanal", vendo o fim da película como o fim de uma "arte": a da revelação. "Qualquer cineasta que trabalhou em película tem uma relação emotiva com o processo de revelação e com o trabalho de etalonnage [ligado à cor] do laboratório a que se "confia" o negativo."

Susana Sousa Dias diz que esse vínculo afectivo passa pelos sentidos: "O cheiro da película, a visão dos fotogramas, o tacto do material..." A realizadora de "Natureza Morta" e "48" nota que "há toda uma forma de trabalhar e pensar que é radicalmente diferente do digital".

Perante a inevitabilidade do digital, que tem vindo a ser melhorado, procurando aproximar-se do acabamento da película, levantam-se reservas quanto ao futuro da esmagadora maioria dos títulos do cinema português, ainda não convertidos para o novo suporte, temendo-se que muitas cópias digitais fiquem por fazer ou sejam feitas com pouca qualidade.

O desaparecimento do laboratório da Tobis parece, por isso, mais preocupante em relação ao passado do cinema português do que ao seu futuro, realça Bruno de Almeida, lembrando que a Cinemateca e o ANIM (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento) não têm condições técnicas para assegurar a transposição da película para o digital - daí a necessidade de se recorrer a outros países.

"A película é ficção"

Em Espanha, há apenas dois laboratórios que ainda revelam película. Na Alemanha, há também empresas a fechar. E muitos outros países da Europa atravessam processos semelhantes, que nalguns casos se precipitaram pela falência da Kodak.


Mas há uma dúvida de fundo a alargar as preocupações resultantes da entrada fulgurante do digital: ninguém sabe qual é a sua efectiva durabilidade, nem a capacidade de armazenamento dos ficheiros. Além de Marco Martins, António da Cunha Telles, produtor histórico do Cinema Novo português dos anos 60, alerta para esta questão, dizendo que a durabilidade do digital não vai além dos cinco anos, o que obriga a que os filmes sejam sujeitos a sucessivas migrações, com as perdas de qualidade que isso acarreta. De resto, Cunha Telles - administrador da Tobis em diferentes momentos, sendo ainda o seu principal accionista privado - recorda que as grandes produções internacionais continuam a ser filmadas em película e depois transferidas para digital para a difusão internacional. É por isso que lamenta que o Estado não tenha aceite a sua proposta de aquisição da empresa, há cerca de um ano: "Perdeu-se uma grande oportunidade de fazer da Tobis um estúdio de reconversão nos dois sentidos, e aberto à procura cada vez maior que se observa em toda a Europa."

"O digital ainda tem muito por onde melhorar", diz Marco Martins, arriscando esta definição: "A película é ficção, o digital é a realidade, a hiper-realidade. Para umas coisas interessa, para outras não."

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