Que guitarra é esta cercada pelo rock?

Central na linguagem do rock, a guitarra tem um lugar menos óbvio e de mais complicada afirmação criativa no jazz. O Jazz em Agosto de 2014 parece querer estimular o debate em torno do lugar do instrumento numa música tendencialmente livre.

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A guitarra D'Angelico que Kurt Rosenwinkel usou em muitos dos seus discos

O movimento de disseminação do jazz fez-se quase por inteiro dos Estados Unidos para o resto do mundo. Como é natural, com o berço perfeitamente identificado em Nova Orleães e numa evolução da música crioula e das marching bands em sonoridades que se foram expandindo e consumando em formações alargadas e só depois mirraram para células mais pequenas, criando o espaço necessário para a emancipação solista dos instrumentistas. Foi nesse contexto providenciado pelo sexteto de uma das luminárias das big bands, Benny Goodman, que o grande introdutor da guitarra eléctrica no jazz, Charlie Christian, encontrou o seu primeiro – e praticamente único – palco. Nos três anos, entre 1939 e 1942, em que tocou com a big band e o sexteto de Goodman, ajudou a padronizar o som da guitarra solista no jazz. A par de uma das raras excepções em sentido contrário, de uma efervescente Paris para os Estados Unidos, com o jazz manouche a transbordar swing do belga Django Reinhardt a marcar fortemente o instrumento

Esse curtíssimo período foi, no entanto, suficiente para causar um tal impacto em Wes Montgomery que este reivindicou a herança de Christian e deu um passo em frente na fixação de um modelo que, dentro dos moldes do jazz mais ortodoxo, se pode talvez dizer que vigora até hoje. O ascendente sobre duas das figuras maiores da guitarra contemporânea no jazz, Bill Frisell ou Pat Metheny, é evidente, apesar dos desvios folk professados pelo primeiro e das tendências delicodoces do segundo. O tipo de fraseado e o som tipificados por Montgomery, em grande medida, continuam a contaminar o jazz actual, com uma influência que se diria pandémica – oiça-se uma das grandes estrelas do instrumento hoje em dia, Kurt Rosenwinkel, e a linha a traçar entre os dois descreve praticamente uma recta, com um ligeiríssimo desvio que permita incluir Metheny.

Por outro lado, também na década de 70 (como Metheny e Frisell), James Blood Ulmer, que abre hoje o Jazz em Agosto, recolheu também os ensinamentos de Montgomery para criar e desenvolver um papel difícil de emular: o da entrada da guitarra no free jazz. Se Ulmer colheu junto de George Benson a técnica de polegar difundida por Montgomery, tornou-se depois o primeiro guitarrista a conquistar Art Blakey (nos Jazz Messengers) e Ornette Coleman, engrandecendo a sua sonoridade com a influência do funk de Sly Stone ou o experimentalismo rock de Jimi Hendrix. E a palavra rock é aqui essencial. O papel nevrálgico da guitarra e o espaço avassalador que tomou na cultura popular com a sua exponencial propagação pelo mundo fora inibiriam em grande medida o espaço a tomar e os riscos a correr no jazz.

Não por acaso, Ulmer apresentar-se-á na Gulbenkian com uma formação que inclui, como convidado, Vernon Reid, membro dos Living Colour, popular banda de funk-metal nos anos 90. De facto, extirpando Ulmer, Gary Lucas, Marc Ribot e o caso extraordinário de Frank Zappa (cujo ponto de partida era, no entanto, outro) do cenário da guitarra no jazz, raros músicos têm ousado aproximações ao rock, num misto de desdém (por uma forma popular e eventualmente entendida como simplista e pouco prestigiante) e de medo (de que acabe por espalhar a sua marca por todo o espaço musical). O resultado prático disto tem sido uma fortíssima bifurcação em torno desse vazio enorme que o rock cava no meio das duas abordagens. Hoje, quase não há quem não siga um de dois modelos: o da estética pontificada por Rosenwinkel (em sucessão de Metheny e Montgomery) e cujos desenho sonoro e abordagem são mimetizados pela grande maioria dos estudantes de guitarra em academias de jazz; e a pulverização completa desta linguagem pela adopção de uma postura inserida no chamado avant-jazz, próxima do noise e do experimentalismo mais radical, zona onde encontramos muitas vezes Otomo Yoshihide e Fred Frith (dose tripla na Gulbenkian, próximos dias 7, 8 e 9) mas também Derek Bailey e Scott Fields – e que, curiosamente, toca o extremo rock onde se descobrem Sonic Youth, Jim O’Rourke e companhia.

Esta edição do Jazz em Agosto, centrada no papel da guitarra, ajudará certamente a reflectir e perceber os caminhos que o instrumento está ou não a tomar, num contexto de maior experimentalismo, com a presença de Luís Lopes a sublinhar também o exemplo de um músico nacional cujo percurso o torna uma excepção bem resolvida na fuga ao cliché (algo que André Fernandes e André Mota também conseguem dentro de uma linguagem mais clássica, ou Manuel Mota e Rafael Toral numa zona mais radical) sem cair numa exploração gratuita e desregrada das possibilidades da guitarra. Hoje, poucos o fazem com a validade de Elliott Sharp, músico que inventou para a guitarra uma tangência inimaginável entre Muddy Waters e John Cage. Falta, talvez a uma escala maior, mais gente como Sharp, Ribot ou Ulmer, na perseguição de uma miragem, tendo o desplante de ousar o inconcebível.

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