Por amor às pessoas

Ao fim de anos e anos a filmar velhinhas a cantar modinhas, Tiago Pereira chega à RTP2 com Povo Que Ainda Canta, uma série de 26 episódios que, mais do que olhar as raízes da música popular portuguesa, perde tempo a ouvir as pessoas.

Fotogaleria
Desde 2011, Tiago Pereira dedica-se a “filmar sistematicamente” toda e qualquer manifestação musical em português: descontando os documentários, já fez perto de dois mil vídeos CECI DE F
Fotogaleria
Povo que Ainda Canta terá 26 episódios de 26 minutos cada e começa a ser exibido dia 8 na RTP2 CECI DE F
Fotogaleria
Para concluir esta série, Tiago Pereira passou mais de 220 dias fora de Lisboa CECI DE F
Fotogaleria
Embora os capítulos não estejam divididos região a região, há episódios dedicados a Miranda do Douro, Mogadouro, Montalegre, as Beiras Interiores, o Douro, o Alto Minho... CECI DE F
Fotogaleria
Em Povo que Ainda Canta não há voz-off nem legendas a enquadrar o que quer que seja: "Queria que as histórias ficassem em aberto", justifica Tiago Pereira CECI DE F
Fotogaleria
"O número de horas de arquivo que guardei é ridículo de tão grande. Descontados os documentários, tenho cerca de 1.800 vídeos. Acho que dava para estar um ano só a vê-los", diz o realizador CECI DE F
Fotogaleria
Fazer o seu arquivo de música portuguesa chegar à televisão e deixar de estar disponível apenas na Internet era um objectivo antigo do documentarista CECI DE F

Há o homem que toda a vida sonhou dedicar o máximo de tempo possível à música, algo a que a mulher torcia no nariz. Vai daí, um dia decidiu fazer greve de sexo enquanto não recebesse da esposa autorização para se dedicar às melodias. Nem falava com ela: se a senhora lhe dirigisse a palavra, virava-lhe as costas. Passaram-se uma, duas, três semanas até que finalmente o, por assim dizer, cansaço venceu a metade feminina do casal, que, a necessitar de afecto, deu o sim à paixão do marido. (A música, isto é.)

Depois há a situação do senhor que queria ter um grupo de gaitas-de-foles mas nem sequer sabia tocar gaita. Com muito esforço aprendeu, a gaita estragou-se, abriu uma máquina de roupa e das peças construiu um torno – e começou a fazer gaitas. Lá fundou o grupo, mas a coisa deu para o torto, visto os membros terem-se zangado entre si. Pelo que precisava de um bombo e de uma caixa para fazer a festa sozinho. Um amigo criou-lhe uma caixa de ritmos mas o senhor precisava de mais, precisava de conseguir coordenar a caixa com a gaita. De modo que não foi de modas e criou um pedal para controlar a caixa.

Por último, e para acabar numa nota menos cómica estas vinhetas de comportamento extremo, podemos ainda lembrar o caso do velhote que não tira a etiqueta do preço do bandolim que toca, que é para não se esquecer de quanto lhe custou – porque isto da música é muito bonito, mas primeiro um homem tem de se alimentar.

Tudo isto faz parte dos 26 episódios de Povo Que Ainda Canta, série realizada por Tiago Pereira que se estreia na próxima quinta-feira, dia 8, na RTP2. Como fica claro pelos exemplos acima mencionados, não se trata de etnografia – não há aqui a ambição de catalogar todos os géneros possíveis da música popular que, de uma forma ou doutra, se pode apelidar de “portuguesa”, antes história. O realizador não podia ser mais premente na sua tentativa de deixar claro que, antes de ser um programa sobre música, esta “é uma série sobre pessoas e as suas histórias”: di-lo repetidas vezes em conversa com o Ípsilon, repetindo a ideia em cada frase, narrando os inúmeros casos estranhos com que se deparou.

E está certo – ou, pelo menos, os três episódios que vimos dão-lhe razão. Pelo que podemos chegar a uma definição consensual: esta é uma série que vai à procura das pessoas que ainda praticam o que em determinado momento foi considerado música popular portuguesa e se enamora dessas pessoas, dando-lhes a frente do plano e a palavra. E, por favor, não vamos agora entrar em debates académicos sobre o que é ou não “português” na música feita pelos portugueses que habitam Portugal. Chamem-lhe a música que os nossos avós tocavam e cantavam – pouco importa, face à gente que aqui surge.

 

Longe de Lisboa

Já devem ter ouvido falar de Tiago Pereira: é filho do extraordinário músico Júlio do mesmo sobrenome e, aos 42 anos, tem uma longa carreira de documentarista ou de realizador ou de activista ou obsessivo – é difícil qualificá-lo.

O mais certo é conhecerem-no de um de dois projectos: ou de Tradição Oral Contemporânea, o (falso?) documentário com B Fachada por protagonista, que revelou o bardo a uma geração que até então o desconhecia; ou o projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, que, em termos sucintos, consiste de um site onde Pereira coloca todos (e com isto queremos dizer: mesmo todos) os vídeos que tem de toda a gente (e com isto queremos dizer: mesmo toda a gente) que encontrou, ao longo dos anos, pelo país a cantar (como dizer isto sem ofender um académico?) palavras em português.

Há mais, muito mais, tão mais que ele já nem consegue ter bem a noção do que fez: “O número de horas de arquivo que guardei é ridículo de tão grande. Descontando os documentários tenho cerca de 1.800 vídeos – a três minutos cada, acho que dava para estar um ano só a vê-los." A verdadeira dimensão da sua saga recolectora mede-se em espaço ocupado em discos duros: “A melhor forma de explicar isto é dizer que tenho 90 Teres de arquivo guardado." Por favor, googlem e dividam 90 teres pela capacidade do vosso laptop: ficarão impressionados.

“Desde sempre”, diz Tiago, “que a Música Portuguesa a Gostar Dela Própria [MPGDP] quis chegar à televisão e não estar apenas em vídeo na Internet." Pereira fala muitas vezes assim, usando não a primeira pessoa do singular, mas a terceira, como o futebolista Jardel, que ficou tão conhecido pelos seus golos (e rambóias com drogas e mulheres) como pela forma como falava de si. Falando com alguns etnomusicólogos, rapidamente descobrimos que esta é uma das razões pelas quais Pereira é das pessoas mais atacadas de entre todos os que se movem no universo da música em Portugal: quando usa a terceira pessoa do singular, quando se dilui no “nós” da MPGDP, é como se se deificasse.

O ódio que vai recebendo não serviu para pará-lo: em 1998 filmou “a história do velhinho que imitava com a voz o som dos acordeões”. Foi a “primeira gravação” de um realizador/documentarista/esteta plástico que a partir de 2011 se dedicou a “filmar sistematicamente” todo o ser lusitano que cantasse ou tocasse o que quer que fosse – não fossem as velhinhas morrer antes de ele as gravar.

Não tem, note-se, uma “escola”. Nunca acabou qualquer bacharelato ou licenciatura nesta ou em qualquer outra área. O que tem é prática. “Quando filmas todos os dias, ganhas uma experiência gigantesca. Já apanhaste todo o tipo de situações possíveis, mais ainda com os objectos que filmo – pessoas que tocam instrumentos com sons frágeis, por exemplo, e tens de pôr os microfones de uma forma sinistra, porque só tens aquele take. É um conhecimento empírico e demora a adquiri-lo, mas quando o reúnes dá-te imenso jeito." 

Filmar todos os dias siginifica “usar o dinheiro que ganhas num projecto para financiar outro que queres fazer e no qual ninguém acredita”. O dinheiro de Chamarrita, de 2012, documentário financiado pelo Governo dos Açores, foi gasto nuns Teres gravados algures por este país; Sinfonia Imaterial, documentário encomendado pelo Inatel, permitiu-lhe chegar a mais umas velhinhas antes do INEM.

“Fiz vários trabalhos em que me pagavam as viagens, davam comida e alojamento, mas sem cachet – em particular para municípios que querem guardar uma memória do seu povo. Em Portugal, para fazeres aquilo que gostas, tens de te desfazer em diversos trabalhos. Eu quero filmar a memória – desde que me alimentem, vou, e é por isso que este ano já andei mais de 220 dias fora de Lisboa e vou passar o Natal longe de Lisboa, com mais uma velhinha." 

A resiliência, está bom de ver, é uma das características de Pereira, que por mais bom ouvido que tenha, nunca deu muita importância ao vocábulo “não”. Disseram-lhe não muitas vezes e ainda assim ele preparou um episódio-piloto que apresentou a Eliseu Oliveira, da RTP. “Esse piloto passava-se no Algarve, tinha 52 minutos e chamava-se Quem Manda Aqui”. Oliveira apreciou de imediato, mas torceu o nariz ao formato – e em vez de 13 episódios de 52 minutos, como Pereira propusera, encomendou 26 episódios de 26 minutos.

Ainda o dinheiro do piloto não lhe caíra na conta e já ele se lançara à estrada seguindo o que seu faro lhe dizia serem “boas histórias”. “Há sempre sítios onde nunca foste”, diz, explicando mais uma vez o seu método de trabalho que parece ser, mais coisa menos coisa, ir à fonte e beber da água em vez de ler sobre a dita na Biblioteca Nacional. “Se há coisa que aprendi”, exclama a dada altura, “é que todos estes quilómetros e horas de vídeos depois, nunca cessei de me surpreender, nem uma única vez. As pessoas têm esse condão."

Em parte isto explica a forma, por assim dizer, não-académica em como a série se divide. Podia tê-la organizado por instrumentos; ou por influências; ou por regiões; ou por conteúdos líricos. É um pouco isto mas não é nada disto: “Tentei dividir a série às vezes por regiões, outras por pessoas, porque as suas histórias são boas de mais para não serem contadas, outras por temas”. Tomemos por exemplo o episódio dos Gaiteiros de Coimbra: há imagens deles desde 1904, numa época em que eles tocavam sempre na Queima das Fitas. Sendo que Ernesto de Oliveira (um recolector do antigamente) só gravou um grupo. "O Giacometti também só gravou um. Parece inacreditável, mas não se fez mais nada sobre eles, e ainda subsistem." 

Isto não é um freak-show

Obviamente, há lugar na série para os fetiches de Tiago: um episódio debruça-se sobre a sua amada viola campaniça; Adélia Garcia, a velhinha que aparece nos seus documentários e é protagonista do vídeo Joana Transmontana, de B Fachada (realizado por Pereira); Celina da Piedade surge em bailes no Alentejo. Mas – e fazendo rima com a divisão estranha, mas altamente funcional, como Pereira organiza a série – também há “objectos estranhos”, como o episódio sobre Mouraria: “Há 27 nacionalidades diferentes naquele bairro; e depois tens um cidadão do Bangladesh que faz dança Bollywood com gestos roubados ao fado, ao som do fado." 

Isto não é, no entanto, um freak-show. É um close-up ao real e, como dizia Caetano, “de perto ninguém é normal”. Mas a vertente etnográfica está lá, com episódios dedicados a Miranda do Douro, Mogadouro, Montalegre, as Beiras interiores, o Douro, o Alto Minho...

Pereira realça que não foi “à procura de uma suposta autenticidade” da música portuguesa. O que lhe interessa é que “existem pessoas” e “o que há de genuíno está na entrega das pessoas à música”.

Um dado importante é que “nesta série não se explica nada”: não há voz-off ou legendas a enquadrar o que seja. “Não sou etnomusicólogo, não tenho de explicar. Sou realizador, conto histórias e queria que as histórias ficassem em aberto”, diz Pereira. Ou, de uma forma mais simples: “Pões as pessoas a cantar e elas de imediato contam 'Comecei a cantar esta cantiga quando tinha x anos, aprendi-a da minha avó, que fazia isto ou aquilo para ganhar a vida'. É todo o contexto que é preciso."

Qualificando a série como “completamente narrativa”, Pereira emociona-se com “a absurda quantidade de lições de vida” que teve a honra de testemunhar. Sabemos o que se segue: uns dirão que não é possível determinar o que é música portuguesa; outros reclamarão da ausência de contexto que explique o significado de determinada prática em determinada época; e não faltará quem diga que ou dividias isto assim ou dividias isto assado, agora esta confusão que para aqui vai é que não pode ser.

Mas numa coisa Pereira tem razão: a música que aqui se filma está cheia de pessoas lá dentro. E no fim o que interessa são elas.<_o3a_p>

Sugerir correcção
Comentar